UMA VIAGEM INTERGALACTICA

Rodrigo chegou usando uma camiseta M, ainda que ele fosse, visivelmente, um GG ou até um extra G. Havia um disco de suor destacando-se embaixo de suas axilas.

— E aí — ele disse.

— Opa — disse Jefferson. Ele abaixou os binóculos e apertou a mão de Rodrigo. O aperto de Rodrigo era frouxo, e o de Jefferson era firme. Sob as axilas de Jefferson também havia suor.

Havia suor em todo lugar no corpo dos dois. O ar em volta deles tremeluzia com o calor. A terra era cor de ocre com pontos verdes moribundos: capim seco, tufos revoltosos, árvores esquálidas. Era agosto no Cerrado, e o sol tinha resolvido olhar a terra mais de perto e chicoteava todas as coisas com seu espírito. Lá embaixo, o sol refletia dolorosamente na lataria dos carros que passavam.

— Calor demais — disse Rodrigo.

— Um calor da porra.

Rodrigo sentou-se ao lado de Jefferson. Estavam sobre um tronco cortado de árvore. A casca era grossa, áspera e fazia coçar a bunda.

— Quanto tempo a gente não se vê, ein? — disse Rodrigo. — Desde o ensino médio. Uma década!

— Saudades lá da escola. A gente podia dar um na cara do outro, namorar e jogar bola o dia inteiro. Era só papagaiada.

Jefferson era magro, as maçãs do rosto esticando a pele e a barba por fazer.

— Pois é — disse Rodrigo, sem tanto entusiasmo. Ele não tinha lembranças muito boas da escola. Na verdade, não tinha lembranças muito boas de nada que aconteceu depois dos seus sete anos de idade.

Conversaram sobre onde estavam os caras que tinham estudado com eles. Falaram sobre os pegadores, seus espíritos selvagens domados pelo casamento. Falaram das garotas bonitas que embarangaram, dos professores (Meireles ainda dá aula lá!), os ricos que ficaram pobres, os que tinham desaparecido, os que foram parar em outro estado. A sensação geral era que eles já tinham engolido a picanha e agora tudo que restava no prato era uma salada de repolho, murcha.

— Eu achei que você estava com a vida ganha, mexendo com esse negócio de computador — disse Jefferson.

— Eu só dava aula de informática pra uns idosos.

— E eles te demitiram?

— Foram morrendo.

— Porra, esse é o problema dos velhos. Ninguém deixou nada no testamento pra você?

— Um me deixou uma impressora, vendi por cem reais.

Deve ter gastado comendo, pensou Jefferson, mas apenas disse:

— Melhor do que nada.

Jefferson voltou a olhar pelos binóculos.

— E você? — perguntou Rodrigo.

— Eu estava bem. Um tio meu conseguiu um cargo pra mim no Senac depois da escola. Trabalhei lá seis anos. Bem tranquilo.

— Que bacana.

— Pois é. Mas comecei a ter rolo com uma colega. Minha mulher descobriu. A Camila, você lembra dela da escola. Foi lá e fez o maior gritedo.

— Meu Deus…

— Lembro até hoje, era uma sexta. E eu achando que ia sair dali e tomar uma cerveja gelada. Ela chegou e começou a esgoelar pra todo mundo que eu traía ela com a menina. Jogou o computador do meu chefe pela janela, achando que era o meu. Jogou o prêmio de Top 10 empresas de Mato Grosso pela janela também. Quebrou todas as impressoras. O segurança conseguiu segurar ela, mas a gritaria continuou até a polícia chegar. Uma meia hora.

— Cacete!

— Me mandaram embora na outra semana. Meu tio já não era mais vereador, tive que partir pra outros trampos. Fiz bico em motel, em obra, em supermercado. Uma merda. Em cada um desses trabalhos eles tiram um pedaço de você. Em obra é a coluna, em mercado é a dignidade.

— E agora, tá mexendo com o quê?

— Roubo.

— Como é que é?

— Roubo. Descobri o melhor esquema, Rodrigão. Na época que eu trabalhava no hotel, conheci um camarada que roubava. Às vezes, só quando pintava uma oportunidade muito boa. Ele tem uma cara de besta, você não ia acreditar. E aí uns meses depois o meu cunhado viajou. Meu cunhado ganha bem, é gerente de concessionária.

Jefferson abaixou-se e pegou uma garrafa pet suada, metade água e metade gelo, e tomou uns bons goles. Rodrigo ficou olhando. Jefferson continuou:

— Lembro dele ficar se gabando pra todo mundo que eles venderam sei lá quantos Toro. Sabe? Aquele carro, Toro?

— Sei.

— Venderam que nem água e meu cunhado se achava o pica das galáxias. Ele viajou, e eu avisei esse meu amigo do hotel. Ele entrou lá e limpou tudo. Só a minha parte ficou em quinze mil! Quinzão, porra! Agora eu trabalho só assim, ao invés de ficar me matando por mil e quinhentos. Não tenho sangue de barata pra pular o portão e entrar, mas sempre fui… como é que fala? Observador. Lá na escola mesmo, eu sabia um monte de coisa só de ficar olhando. Lembra disso?

— Lembro sim.

Rodrigo olhou com mais cuidado na direção dos binóculos e viu que havia um condomínio fechado pra aquele lado. As casinhas eram brancas como creme, construídas em formato de caixa.

— É o seguinte, Jefferson, eu respeito esse lance, mas esse tipo de coisa não é comigo…

— Ah, pára com isso, cara! Não te chamei aqui pra participar. Só tava… contando. Sei lá, porra.

— Eu sei.

— E por que caralhos você usa essas blusas tão apertadas?

Jefferson finalmente baixou os binóculos e anotou alguma coisa num caderninho que tirou do bolso. Continuou:

— Eu só tava contando pra você entender o porquê da gente estar no meio do nada. Construíram esse condomínio aí tem uns dois meses. Nem terminaram todos os muros e o babaca ali já construiu uma cepa de uma casa. Tem a avenida passando na frente, mas o resto é tudo mato.

— Certo. Mas não tenho interesse. E das camisetas, eu…

— Eu te chamei porque encontrei um negócio que é de tecnologia. E você é o cara, desde a época da escola.

— Entendi.

— Lembro que você tinha um aparelhinho e conseguia desligar a TV do refeitório quando quisesse.

— Era um programinha pra celular.

— Você é crânio. Vem comigo.

Jefferson se levantou e adentrou o matagal atrás deles. Rodrigo o seguiu, seu corpo obedecendo antes mesmo da cabeça tomar uma decisão. Andaram por uns quinze minutos, cada vez mais fundo naquele pedaço falho de cerrado. Rodrigo considerava a possibilidade de Jefferson matá-lo por causa dos órgãos, ou sequestrá-lo. Por que aquele puto não tinha mandado uma foto do que quer que fosse no WhatsApp?

— Olha só, cara, eu tenho um compromisso às três — disse.

— Tem porra nenhuma.

— É sério.

— Tamo quase lá.

O círculo de suor sob os braços de Rodrigo finalmente tomou conta da camiseta toda. O som dos carros na avenida morreu na distância. Carrapichos pontilhavam a barra da calça dos dois. Não havia sequer um passarinho cantando.

Rodrigo estava prestes a desistir quando chegaram. Ele olhou em volta, procurando uma equipe de filmagem.

— Não pode ser.

— Não é de última geração, isso aí?

— Nunca vi um negócio desses antes, Jefferson! Tá me sacaneando, caralho?

— Como é que nunca viu?

Ela estava no chão, meio enterrada, meio pra fora. Era púrpura. Era elíptica, como um enorme ovo feito de vidro. Pontinhos claros de estrelas cintilavam entre veios nebulosos, o que lembrava uma dessas imagens que aparecem em documentários sobre o espaço. Rodrigo chegou mais perto e viu seu próprio rosto feio na superfície vítrea.

— Será que é ametista?

— Quê?

— Ametista, aquela pedra que usam pra fazer joias. Talvez seja até safira.

— De repente é! Puta que pariu!

— Mas não é possível. Isso é polido. E…

Os veios estelares estavam se mexendo! Lentamente, estavam se mexendo. Rodrigo olhou para cima e viu uma sequência de símbolos que pareciam hieróglifos.

— O que é aquilo ali?

— Foi por isso que eu te chamei. Não é código de computador?

— Não.

— Olha direito! Se não descobrir, não ganha a sua parte.

Jefferson estava ligando para um camarada dele, tentando alugar um guincho, mas sem o motorista. Rodrigo estendeu a mão e tocou um daqueles símbolos. A marca de seu dedo ficou brilhando, e então uma parte daquele objeto simplesmente desgrudou-se e flutuou para fora.

— Eita, porra! Jefferson!

Jefferson desligou o celular e eles entraram. O lado de dentro era bem maior que o de fora. Era perfeitamente transparente, dava pra ver o matagal em volta.

— Pelo menos tá geladinho por aqui — disse Jefferson. Ensaiou sentar-se no piso, mas uma cadeira saiu do chão e deu suporte às suas nádegas magras.

— Meu Deus, é uma nave espacial! — disse Rodrigo.

— Sempre soube que eles existiam.

Rodrigo foi em direção ao painel. Não tinha nada escrito, só um monte de círculos concêntricos, e…

— Tem um câmbio aqui — disse ele, e mexeu.

O pedaço da nave que estava flutuando lá fora voltou e se encaixou novamente. Eles não conseguiram abrir mais, estavam presos.

De repente, viram o condomínio de cima, e depois a cidade, o estado e o país, até que finalmente encararam o círculo redondo e esfumaçado que é a Terra.

Lá embaixo, um bichinho transparente com olhos púrpura cutucou o outro e disse:

— Aquela ali não é a nossa nave?

Para terem água foi fácil, mas só no quarto dia Jefferson e Rodrigo entenderam a sequência de botões que criava comida. Em silêncio, comeram pão com carne de panela enquanto a nave surfava preguiçosamente entre as estrelas e sóis e luas. Eles viram planetinhas de todas as cores, e em alguns havia até vida.

— Naquele ali começaram a instalar os cabos de internet — comentou Rodrigo.

— Naquele ali, querem só saber de farra — disse Jefferson sobre um outro.

O primeiro beijo foi um ano depois. E sabe o que é surpreendente? A iniciativa veio de Rodrigo, enquanto passavam na frente de uma supernova. O constrangimento inicial rapidamente deu lugar à intimidade. Houve um período feliz, mas nada é para sempre.

Jefferson matou Rodrigo numa curva entre duas luas. Depois, ele agachou-se na parede e chorou por um bom tempo, olhando para o corpo estático da pessoa que ele mais havia amado, depois de sua mãe. O universo era silencioso. O universo era uma música.

Enquanto as lágrimas secavam, a nave começou a desacelerar e descer num planeta cor de tangerina. Uma multidão de criaturinhas acenava com entusiasmo lá embaixo.Rodrigo chegou usando uma camiseta M, ainda que ele fosse, visivelmente, um GG ou até um extra G. Havia um disco de suor destacando-se embaixo de suas axilas.

— E aí — ele disse.

— Opa — disse Jefferson. Ele abaixou os binóculos e apertou a mão de Rodrigo. O aperto de Rodrigo era frouxo, e o de Jefferson era firme. Sob as axilas de Jefferson também havia suor.

Havia suor em todo lugar no corpo dos dois. O ar em volta deles tremeluzia com o calor. A terra era cor de ocre com pontos verdes moribundos: capim seco, tufos revoltosos, árvores esquálidas. Era agosto no Cerrado, e o sol tinha resolvido olhar a terra mais de perto e chicoteava todas as coisas com seu espírito. Lá embaixo, o sol refletia dolorosamente na lataria dos carros que passavam.

— Calor demais — disse Rodrigo.

— Um calor da porra.

Rodrigo sentou-se ao lado de Jefferson. Estavam sobre um tronco cortado de árvore. A casca era grossa, áspera e fazia coçar a bunda.

— Quanto tempo a gente não se vê, ein? — disse Rodrigo. — Desde o ensino médio. Uma década!

— Saudades lá da escola. A gente podia dar um na cara do outro, namorar e jogar bola o dia inteiro. Era só papagaiada.

Jefferson era magro, as maçãs do rosto esticando a pele e a barba por fazer.

— Pois é — disse Rodrigo, sem tanto entusiasmo. Ele não tinha lembranças muito boas da escola. Na verdade, não tinha lembranças muito boas de nada que aconteceu depois dos seus sete anos de idade.

Conversaram sobre onde estavam os caras que tinham estudado com eles. Falaram sobre os pegadores, seus espíritos selvagens domados pelo casamento. Falaram das garotas bonitas que embarangaram, dos professores (Meireles ainda dá aula lá!), os ricos que ficaram pobres, os que tinham desaparecido, os que foram parar em outro estado. A sensação geral era que eles já tinham engolido a picanha e agora tudo que restava no prato era uma salada de repolho, murcha.

— Eu achei que você estava com a vida ganha, mexendo com esse negócio de computador — disse Jefferson.

— Eu só dava aula de informática pra uns idosos.

— E eles te demitiram?

— Foram morrendo.

— Porra, esse é o problema dos velhos. Ninguém deixou nada no testamento pra você?

— Um me deixou uma impressora, vendi por cem reais.

Deve ter gastado comendo, pensou Jefferson, mas apenas disse:

— Melhor do que nada.

Jefferson voltou a olhar pelos binóculos.

— E você? — perguntou Rodrigo.

— Eu estava bem. Um tio meu conseguiu um cargo pra mim no Senac depois da escola. Trabalhei lá seis anos. Bem tranquilo.

— Que bacana.

— Pois é. Mas comecei a ter rolo com uma colega. Minha mulher descobriu. A Camila, você lembra dela da escola. Foi lá e fez o maior gritedo.

— Meu Deus…

— Lembro até hoje, era uma sexta. E eu achando que ia sair dali e tomar uma cerveja gelada. Ela chegou e começou a esgoelar pra todo mundo que eu traía ela com a menina. Jogou o computador do meu chefe pela janela, achando que era o meu. Jogou o prêmio de Top 10 empresas de Mato Grosso pela janela também. Quebrou todas as impressoras. O segurança conseguiu segurar ela, mas a gritaria continuou até a polícia chegar. Uma meia hora.

— Cacete!

— Me mandaram embora na outra semana. Meu tio já não era mais vereador, tive que partir pra outros trampos. Fiz bico em motel, em obra, em supermercado. Uma merda. Em cada um desses trabalhos eles tiram um pedaço de você. Em obra é a coluna, em mercado é a dignidade.

— E agora, tá mexendo com o quê?

— Roubo.

— Como é que é?

— Roubo. Descobri o melhor esquema, Rodrigão. Na época que eu trabalhava no hotel, conheci um camarada que roubava. Às vezes, só quando pintava uma oportunidade muito boa. Ele tem uma cara de besta, você não ia acreditar. E aí uns meses depois o meu cunhado viajou. Meu cunhado ganha bem, é gerente de concessionária.

Jefferson abaixou-se e pegou uma garrafa pet suada, metade água e metade gelo, e tomou uns bons goles. Rodrigo ficou olhando. Jefferson continuou:

— Lembro dele ficar se gabando pra todo mundo que eles venderam sei lá quantos Toro. Sabe? Aquele carro, Toro?

— Sei.

— Venderam que nem água e meu cunhado se achava o pica das galáxias. Ele viajou, e eu avisei esse meu amigo do hotel. Ele entrou lá e limpou tudo. Só a minha parte ficou em quinze mil! Quinzão, porra! Agora eu trabalho só assim, ao invés de ficar me matando por mil e quinhentos. Não tenho sangue de barata pra pular o portão e entrar, mas sempre fui… como é que fala? Observador. Lá na escola mesmo, eu sabia um monte de coisa só de ficar olhando. Lembra disso?

— Lembro sim.

Rodrigo olhou com mais cuidado na direção dos binóculos e viu que havia um condomínio fechado pra aquele lado. As casinhas eram brancas como creme, construídas em formato de caixa.

— É o seguinte, Jefferson, eu respeito esse lance, mas esse tipo de coisa não é comigo…

— Ah, pára com isso, cara! Não te chamei aqui pra participar. Só tava… contando. Sei lá, porra.

— Eu sei.

— E por que caralhos você usa essas blusas tão apertadas?

Jefferson finalmente baixou os binóculos e anotou alguma coisa num caderninho que tirou do bolso. Continuou:

— Eu só tava contando pra você entender o porquê da gente estar no meio do nada. Construíram esse condomínio aí tem uns dois meses. Nem terminaram todos os muros e o babaca ali já construiu uma cepa de uma casa. Tem a avenida passando na frente, mas o resto é tudo mato.

— Certo. Mas não tenho interesse. E das camisetas, eu…

— Eu te chamei porque encontrei um negócio que é de tecnologia. E você é o cara, desde a época da escola.

— Entendi.

— Lembro que você tinha um aparelhinho e conseguia desligar a TV do refeitório quando quisesse.

— Era um programinha pra celular.

— Você é crânio. Vem comigo.

Jefferson se levantou e adentrou o matagal atrás deles. Rodrigo o seguiu, seu corpo obedecendo antes mesmo da cabeça tomar uma decisão. Andaram por uns quinze minutos, cada vez mais fundo naquele pedaço falho de cerrado. Rodrigo considerava a possibilidade de Jefferson matá-lo por causa dos órgãos, ou sequestrá-lo. Por que aquele puto não tinha mandado uma foto do que quer que fosse no WhatsApp?

— Olha só, cara, eu tenho um compromisso às três — disse.

— Tem porra nenhuma.

— É sério.

— Tamo quase lá.

O círculo de suor sob os braços de Rodrigo finalmente tomou conta da camiseta toda. O som dos carros na avenida morreu na distância. Carrapichos pontilhavam a barra da calça dos dois. Não havia sequer um passarinho cantando.

Rodrigo estava prestes a desistir quando chegaram. Ele olhou em volta, procurando uma equipe de filmagem.

— Não pode ser.

— Não é de última geração, isso aí?

— Nunca vi um negócio desses antes, Jefferson! Tá me sacaneando, caralho?

— Como é que nunca viu?

Ela estava no chão, meio enterrada, meio pra fora. Era púrpura. Era elíptica, como um enorme ovo feito de vidro. Pontinhos claros de estrelas cintilavam entre veios nebulosos, o que lembrava uma dessas imagens que aparecem em documentários sobre o espaço. Rodrigo chegou mais perto e viu seu próprio rosto feio na superfície vítrea.

— Será que é ametista?

— Quê?

— Ametista, aquela pedra que usam pra fazer joias. Talvez seja até safira.

— De repente é! Puta que pariu!

— Mas não é possível. Isso é polido. E…

Os veios estelares estavam se mexendo! Lentamente, estavam se mexendo. Rodrigo olhou para cima e viu uma sequência de símbolos que pareciam hieróglifos.

— O que é aquilo ali?

— Foi por isso que eu te chamei. Não é código de computador?

— Não.

— Olha direito! Se não descobrir, não ganha a sua parte.

Jefferson estava ligando para um camarada dele, tentando alugar um guincho, mas sem o motorista. Rodrigo estendeu a mão e tocou um daqueles símbolos. A marca de seu dedo ficou brilhando, e então uma parte daquele objeto simplesmente desgrudou-se e flutuou para fora.

— Eita, porra! Jefferson!

Jefferson desligou o celular e eles entraram. O lado de dentro era bem maior que o de fora. Era perfeitamente transparente, dava pra ver o matagal em volta.

— Pelo menos tá geladinho por aqui — disse Jefferson. Ensaiou sentar-se no piso, mas uma cadeira saiu do chão e deu suporte às suas nádegas magras.

— Meu Deus, é uma nave espacial! — disse Rodrigo.

— Sempre soube que eles existiam.

Rodrigo foi em direção ao painel. Não tinha nada escrito, só um monte de círculos concêntricos, e…

— Tem um câmbio aqui — disse ele, e mexeu.

O pedaço da nave que estava flutuando lá fora voltou e se encaixou novamente. Eles não conseguiram abrir mais, estavam presos.

De repente, viram o condomínio de cima, e depois a cidade, o estado e o país, até que finalmente encararam o círculo redondo e esfumaçado que é a Terra.

Lá embaixo, um bichinho transparente com olhos púrpura cutucou o outro e disse:

— Aquela ali não é a nossa nave?

Para terem água foi fácil, mas só no quarto dia Jefferson e Rodrigo entenderam a sequência de botões que criava comida. Em silêncio, comeram pão com carne de panela enquanto a nave surfava preguiçosamente entre as estrelas e sóis e luas. Eles viram planetinhas de todas as cores, e em alguns havia até vida.

— Naquele ali começaram a instalar os cabos de internet — comentou Rodrigo.

— Naquele ali, querem só saber de farra — disse Jefferson sobre um outro.

O primeiro beijo foi um ano depois. E sabe o que é surpreendente? A iniciativa veio de Rodrigo, enquanto passavam na frente de uma supernova. O constrangimento inicial rapidamente deu lugar à intimidade. Houve um período feliz, mas nada é para sempre.

Jefferson matou Rodrigo numa curva entre duas luas. Depois, ele agachou-se na parede e chorou por um bom tempo, olhando para o corpo estático da pessoa que ele mais havia amado, depois de sua mãe. O universo era silencioso. O universo era uma música.

Enquanto as lágrimas secavam, a nave começou a desacelerar e descer num planeta cor de tangerina. Uma multidão de criaturinhas acenava com entusiasmo lá embaixo.