#000139 – 04 de Abril de 2020

O multiculturalismo falhou. Isto dizem pessimistas de esquerda, como o Zizek. E na direita, entre outros, cínicos como o Houellebecq. As ideias veiculadas pela teoria interseccional poderão ser uma consequência dessa derrota. Ou já uma alternativa: ao mesmo tempo radicalizante e reacionária. Estes são tempos de confusão ideológica, perfeitos para oportunistas e trolls. Tempos em que muito do ativismo se resume a perseguir pessoas online, em campanhas de difamação ou de boicote. Por isso, as discussões tendem a ser táticas, cautelosas e estéreis. Isso é um retrocesso intelectual. O risco é um componente de qualquer atividade criativa. E um debate deve ser uma arena onde as más ideias são testadas e, espera-se, derrotadas. Não um campo minado para o qual que se tem medo de atirar uma boa ideia.

Para ser muito claro, a esquerda não ganhou. A revolução influenciou a política (e muito mais a academia e as artes). A social-democracia conheceu um curto período de prosperidade numa mão cheia de países. E foi só. Nos EUA é que se considera que falar em algo tão básico como o direito aos cuidados de saúde é propor o comunismo. Na mesma linha, ideias de igualdade entre seres humanos independentemente das suas circunstâncias também são vistas como de esquerda. Mas nos países do Norte da Europa, os democratas cristãos, liberais e outras sensibilidades de centro direita aceitam estas ideias como avanços civilizacionais, não como cavalos de Tróia que os seus inimigos ideológicos conseguiram colocar dentro dos muros da decência.

Vamos evitar esta atitude norte-americana de autodefesa que usa ataques preventivos a pessoas que servem como bodes expiatórios da história. Não há que defender o status quo, a menos que se acredite mesmo no Fim da História. Os avanços foram ainda modestos e os retrocessos inúmeros. E perseguir pessoas como tática política é odioso. Impedir oponentes de falar, organizar o seu despedimento e usar calúnia são coisas que nos devem envergonhar a todos. Que não haja medo de falar, muito menos de escutar. E que se combatam ideias com ideias melhores.

Voltando ao início. O multiculturalismo falhou. Não sabemos lidar uns com os outros. Isto deve ser causa de preocupação. Somos ligeiramente diferentes. Mas essa pequena distância de uma cultura à outra causa desconforto e atrito. E mesmo violência. As guerras que foram patrocinadas fora do Ocidente trouxeram consequências ao Ocidente. E fechar os olhos é juntar cegueira à culpa. O Zizek propõe que se reabilite a ideia de tolerância, há muito tempo rejeitada pela esquerda, que defende no seu lugar a ideia de aceitação. Eu vejo algum valor nessa ideia. Cortesia, distância e um mínimo de respeito pelo vizinho. Não temos de gostar uns dos outros. Ainda recorrendo ao Zizek, o mais importante é que encontremos e lutemos por causas comuns, não que aceitemos tudo uns dos outros.