#000154 – 19 de Abril de 2020
Muita sci-fi imaginou o mundo sem humanos. Cenários de cidades abandonadas tornaram-se cliché. Um certo orgulho misantrópico gosta mesmo de imaginar que a vida iria prosperar sem pessoas. Foi um sucesso a série do canal História “Life After People”. O primeiro episódio de “Walking Dead” e filmes como “I am Legend” ou “The Quiet Earth” mostram a solidão de um único humano perante a civilização desaparecida. Este olhar do último humano confunde-se com o do espectador. Torna-se ainda mais vazia de vida uma cidade que é percorrida por uma única pessoa. As ideias que surgiram na ficção sobre catástrofes partilhadas geralmente implicavam viver abaixo da superfície ou lutando clandestinamente contra uma qualquer ameaça. Nunca ninguém imaginou esta solidão partilhada digitalmente, esta sintonia dos felizardos. Os ecrãs, teclados, emojis e memes fazem a intermediação do nosso desejo. E vão ocultando a realidade dos que não têm teto nem internet, cuja solidão é agora maior e mais perigosa. Noutro dia no supermercado, os rituais da distância social feitos amena rotina, uma criança pequena entrou de máscara, para trocar as moedas da esmola por uma nota. A sua fome algo mais urgente que a preocupação com um vírus. Mendigava talvez a mando de um adulto e a minha imaginação fez greve, ferida. Afligiu-me como de repente isto era o quotidiano. E voltei ao conforto da minha casa com as compras habituais.