#000158 – 23 de Abril de 2020
Em criança comecei o primeiro diário. Tinha mesmo uma chave. Comecei muitos diários, mas aborrecia-me o artifício de me dirigir a um pedaço de folhas. Em adolescente, já não usava a expressão querido diário. E jogava com a ideia de secretismo, de intimidade e espaço pessoal: suculentos conceitos que a adolescência me fazia descobrir, separando-me dos adultos. Criei dezenas de sinais de pontuação, de forma que o sentido de uma frase, mesmo se lida por olhos não autorizados, seria turvo. Alguns sinais de pontuação alteravam os outros, uma meia-dúzia nem sequer significavam nada: eram fogo-fátuo semântico, para atrair e baralhar a atenção de imaginados espiões. Tivesse eu continuado a escrever e usaria agora um idioleto. Interrompi essa queda na ofuscação do significado. E se me viesse parar às mãos esse diário, suspeito que até para mim seria impossível furar a opacidade do que escrevi. Aqui, escrevo o meu último diário.