#000162 – 27 de Abril de 2020

Kafka escreveu em papel. A publicação do que não foi por ele queimado ou mais tarde alvo de batalha legal é uma história de manuscritos. Na nuvem, não há baús, como o de Fernando Pessoa, um paraíso de estudo e catalogação para académicos. Em qualquer que seja o formato digital, os escritores protegem-se com passwords. Uma obra inteira, mesmo de centenas de livros, dá um ficheiro comprimido pequeno. Uma fúria destrutiva, como a de Kafka, que terá obliterado mais de 90% do que escreveu, é agora um simples clique. E necessita ainda da indignidade de esvaziar o lixo, clicando num ícone que representa o purgatório do que se quer apagar. Há pouco drama na forma como se regista a obra, que se vai imaterializando. Uma password pode ser uma barreira impenetrável, depois de um autor desaparecer. E pode a obra restar, num éter que humanos não poderão nunca decifrar. Na ficção científica, não havendo papel, os documentos são geralmente ainda objetos. Discos, esferas, hologramas, cristais. Talvez nos possa vir daí inspiração para uma alternativa ao melancólico revivalismo da cassete e do papel e do vinil. Objetos futuristas, que os escritores pudessem preparar para serem abertos em determinada data, ou por determinadas pessoas, ou circunstâncias. Algo que se tocasse, transportasse e ativasse com um pouco de nós, humano.