#000192 – 27 de Maio de 2020
Tenho de acabar um conto Solarpunk, para o enviar. E ando a escrever contos distópicos. Esta oscilação entre a distopia e a utopia é violenta. Nos anos 1980 havia os utópicos, como Jaron Lanier, e o No Future dos cyberpunks. A estética cyberpunk acabaria por ganhar magnetismo libidinal. O que é uma inversão do que Huxley fez em Admirável Mundo Novo. Este livro apresenta um mundo em que a perfeição e a liberdade são obrigatórias, estão inscritas na lei. Nas últimas décadas, a catástrofe foi aceite como inevitável, e o cinismo tornou-se a linguagem dessa resignação.
Poucos livros conseguiram o que Ursula K. Le Guin fez em “The Dispossessed”. Aqui, a utopia já aconteceu. É humana e imperfeita. E absolutamente insuficiente. O herói é aquele que não se resigna. Que se sente insatisfeito ao mesmo tempo com o isolamento da sua sociedade utópica e com o facto de a sociedade-mãe ser tão distópica. Vai tentar reaproximar as duas sociedades. No conto “Those who walk away from Omelas” o humanismo de Le Guin é ainda mais acutilante e radical. Coloca-nos a incómoda questão: e se fosse possível uma sociedade boa, próspera, justa, feliz? E se tudo isto fosse possível com a única condição de que uma só pessoa sofresse horrivelmente?
Procuro as toxinas que ameaçam o humanismo, sou um antropólogo da miséria, um sabotador da misantropia. Escrevo histórias como lupas, como dedos narrativos a apontar, como pontos de interrogação a questões que se acendem ao lermos. É violenta esta oscilação entre a esperança e a dor, entre o potencial e a catástrofe. Mas é uma pálida radiografia da mundo, onde o sofrimento e a ruína são bem reais.