#000199 – 03 de Junho de 2020

Somos violentos. Fazemos sofrer e matamos. O que nos diferencia de outros primatas não é a violência. É o discurso e a ideologia. Podemos pensar sobre o que sentimos. Observar o que fazemos. Refletir, corrigir. Mesmo para aqueles de nós que duvidam do livre arbítrio, é possível ainda acreditar que somos ao menos uma das influências sobre o nosso próprio comportamento. Entre a observação e a ação há um espaço enorme mediado pela biologia, pela consciência, pelo hábito, pela cultura.

Depois vem a ideologia. A forma mais insidiosa de institucionalizar a violência. De transferir a culpa para a vítima. A ideologia justifica, instiga, motiva. Em Minneapolis é legal um polícia pressionar com o joelho o pescoço de uma pessoa já imobilizada. Nos E.U.A é comum a polícia parar, deter, espancar e matar afro-americanos. Sem nenhum motivo a não ser o facto de serem afro-americanos.

Tal como Philip Zimbardo lembrou a propósito das atrocidades de Abu Ghraib, estes agentes da lei não são “a few bad apples”. São a própria mão armada da ideologia. O conforto, a segurança de quem tortura não vem de uma anormal psicopatia. Mas de uma certeza de estar a agir dentro da lei. Este é o terror maior. Um sistema que banaliza o mal. Uma indústria da violência.

Choca-nos a forma como a morte nos chega pelo ecrã. Como durante longos minutos é possível um homem suplicar pela sua vida e ser asfixiado por um polícia, enquanto os outros agentes da lei assistem tranquilos. A empatia com que sofremos não é suficiente. Esta e muitas vidas já se perderam. São irreparáveis o sofrimento e a perda provocados. Milhões de afro-americanos estão encarcerados para alimentar o negócio privado das prisões. Morte ou prisão são as duas ameaças constantes na vida de um afro-americano.

Há que encontrar formas de sair da paralisia e do choque, de formar redes de solidariedade. E unir pessoas e culturas diferentes, como os Black Panther, Martin Luther King Jr. e Malcom X fizeram, em tempos de violência ainda maior. A esperança não é o último reduto. É um dever. Quando o poder se resigna ao apocalipse, há que ter esperança, mesmo sem optimismo, como diz Srećko Horvat. É urgente fazê-lo, porque não somos, ninguém é inocente em relação ao racismo, à violência, à raiva, ao medo do outro. Nenhuma cultura é Arcadia. Só uma urgência comum de nos protegermos e respeitarmos pode construir fundamentos para lutar contra o mal, contra a legitimação do ódio que separa e destrói. E como Martin Luther King Jr., temos de resistir à violência, lutando contra a sua perpetuação, mesmo se suspeitarmos que só as próximas gerações colherão os frutos.