#000220 – 24 de Junho de 2020

Em três gerações, tudo mudou. A geração dos meus pais via as ferramentas como algo mecânico. Eu cresci a sentir que interagia com linguagem. No software a que me habituei, o interface é sobretudo semântico, mais ainda que visual. Agora, as coisas acontecem já de forma discreta e automática. A geração a seguir à minha é bastante cibernética. Há uma continuidade entre o eu e a tecnologia que não me é natural, mas que está por todo o lado.

Numa videoconferência, é o software que decide que rosto mostrar e recentemente a linguagem gestual passou a ser reconhecida, de forma a colocar a pessoa sempre visível aos outros interlocutores no ecrã. Há já muito tempo que as câmaras frontais dos telemóveis detetam rostos e ajustam o tom da pele, entre outros “aperfeiçoamentos” automáticos. Os acelerómetros e detetores de proximidade dos telemóveis dão constantemente informação ao aparelho. E nem nos apercebemos que muita coisa se está a passar. Os ecrãs desligam-se, o som ambiente é cancelado, a voz humana é reconhecida. Os nossos movimentos são detetados. Algumas destas funcionalidades são escolhidas pelos utilizadores. Mas outras fazem parte do uso intuitivo do aparelho. Estão lá, mas nem reparamos.

Aqui ficam dois exemplos recentes de como os telemóveis “entendem” o mundo e aumentam a nossa realidade. O Google Lens usa a câmara e consegue identificar objetos, texto, locais rapidamente. Tem um “olhar” semântico que é melhorado cada vez que os utilizadores confirmam que acertou ou errou. A nova versão do iOS terá uma funcionalidade que detecta automaticamente se existe algo importante, como a campainha a tocar, um alarme de incêndio ou outra mudança significativa na realidade fora do ecrã. Assim que é detectada essa urgência, é o sistema operativo que chama a atenção do utilizador.

Isto, a juntar à nossa identidade real, esse gigantesco avatar invisível a cujo acesso não temos direito legal, faz das máquinas nossas babysitters discretas. Mimam-nos em detalhe microscópico, corrigem, antecipam, facilitam, personalizam, lembram, escondem, ensinam. Os gigantes financeiros que produzem esta tecnologia vão reduzindo o espaço para a decisão humana. Fazem-no a grande escala, na política. E à microescala, nas nossas interações com os seus produtos, de forma a que sejamos sobretudo corpos abertos a estímulos e não tanto mentes criativas e imprevisíveis.

Se uma porta automática não se abrir, porque o sensor não funciona, a dor de cabeça a seguir saberemos explicá-la sem dificuldade. Mas na nossa relação quotidiana com o software e os gadgets há inúmeros automatismos que nem sequer reconhecemos e sem os quais, suspeito, nos sentiríamos desorientados.