#000230 – 4 de Julho de 2020
The Purge é uma história cruel. Falo do primeiro filme, já que os seguintes não acrescentam nada. A premissa é simples. Nos EUA, há uma noite em que todas as leis são suspensas. Durante exatamente 12 horas, nenhum ato será punido pela lei.
Durante o Maio de 68, foi repetido o slogan “é proibido proibir”, com uma certa ternura irónica. A frase é muito eficaz, precisamente por ser um paradoxo. Ao tentarmos levá-la a sério, auto-destrói-se, demonstrando precisamente a impossibilidade de proibir. Este é um exemplo de uma forma de humor subversivo.
O que é perturbador em The Purge é que a ausência de lei é transformada numa obrigação. A suspensão da polícia e dos tribunais, de todo o aparato legal não significa nem inspira liberdade. De certa forma é um reverso violento da máxima “é proibido proibir”. A Purga a que se refere o título do filme, é um direito constitucional naquela América distópica ficcional. Todos os americanos têm, naquela história, o “god given right” de expurgar os seus impulsos mais violentos. A consequência é bizarra, embora confirme o nosso pior pessimismo misantrópico.
Ao suspenderem-se os mecanismos legais do estado, uma outra lei, muito mais inescapável, afirma, sem espaço para contestação: “é obrigatória a violência”.
Ao ver o filme, choquei-me com isto. Quando nenhuma lei nos persegue, à partida seríamos (legalmente) livres para milhões de coisas. Também aqui há tautologia, a lei, pela sua ausência, instaura um tipo muito específico de liberdade. É como se para ser livres, primeiro tivéssemos que ser agrilhoados e só ao nos retirarem os grilhões nos fosse legítimo falar de liberdade. Mesmo que esta premissa fizesse sentido, a obrigação em relação à vingança e à violência é desconcertante. Este filme deixa-me cheio de dúvidas, ao contrário da reação que parece ser normal nos espectadores que o vêem como uma demonstração direta de como, debaixo das convenções e das leis que temos em comum, somos lobos uns dos outros, animais patologicamente interessados da destruição uns dos outros.
Desde 2013 que continuo com dúvidas, não sei o que pensar. Não ajuda o facto de o filme se ter tornado num “franchise” com muito sucesso, com quatro sequelas e mais uma em produção e com uma série de televisão. A premissa, que me pareceria esgotada numa curta-metragem, dá pano para manchas de sangue. Há um prazer mórbido, nos espetadores, em verem este cenário do predação e massacre a ser concretizado no ecrã.