#000231 – 05 de Julho de 2020
Até aos 21/22 anos, tive pouca barba e o cabelo comprido. Era magro e o meu cabelo andava sempre solto. Usava roupa larga. Vivia numa vila com pouca população. Centenas de vezes, antes de eu me virar me chamavam dizendo “menina”. Nem sempre a confusão era desfeita quando me viam de frente. Havia muito poucos rapazes com cabelo comprido no sítio onde cresci e creio que os conhecia a todos. Naquele tempo, nos anos 90, algumas crianças chegaram mesmo a perguntarem-me porque é que eu tinha cabelo de rapariga. Sentia-me desconfortável e embaraçado, quando me confundiam. Mas isso, percebi, era fruto da minha própria homofobia. Ser considerado efeminado ou homossexual, era algo que me preocupava. Demorei anos a superar o meu próprio preconceito. Foi já no início do século XXI que pude deixar essa fobia para trás.
Tenho muito a agradecer a vários blogues do que na altura se chamava a Blogaysfera. Isto foi entre 2004 e 2006, antes de sequer haver Facebook. As conversas eram lentas, duravam dias. Escrevia-se um post, alguém respondia e os posts de resposta prolongavam-se e chamavam mais pessoas para a conversa. Algumas das pessoas mais interessantes eram comentadores, nem sequer tinham blogues. Sobretudo com os blogues Cacaoccino e o Renas e Veados, aprendi muito sobre os assuntos da comunidade LGBT, sobre mim e sobre o que era necessário mudar na sociedade. Na altura não poderia imaginar que iríamos chegar a este estado de coisas – uma situação em que tanta coisa precisa ainda de ser mudada com urgência, mas os esforços maiores são colocados no microcosmos da linguagem.
Nas universidades anglo-saxônicas é agora comum alguns alunos exigirem ser tratados por determinados pronomes de terceira pessoa. Algumas faculdades dão mesmo uma lista aos caloiros, para que possam escolher.
Algo que me inquieta é o seguinte: ninguém em inglês fala com outra pessoa através de pronomes na terceira pessoa. O pronome usado é universal e não tem género: You. Há um único pronome entre duas pessoas que se tratam com igualdade:
Tu.
A fixação na terceira pessoa tem dois efeitos: cria distância entre pares e legisla a forma como terceiros se devem referir a nós na nossa ausência. Mesmo nas situações em que é preciso referirmo-nos a uma terceira pessoa, basta usar o nome da pessoa. Em Portugal nós temos mesmo uma expressão popular que é usada para recusar que se refiram a nós através de um pronome e não com o nosso nome. Por exemplo, alguém diz “Eu não concordo com ela (ele/etc)” e a expressão popular com que a pessoa mencionada protesta é “ela tem nome”. Agora o oposto acontece. Uma geração exige ser tratada por um elemento gramatical, um marcador de género, através da distância da terceira pessoa, em vez de ser tratado por quem é, na primeira pessoa, pelo nome. Em inglês chama-se a isto “being treated by what you are, instead of who you are”. É uma viragem nos acontecimentos bastante triste.
Lembro-me de numa conversa, nos comentários, com a autora do blogue Cacaoccino, eu errar a ordem das letras LGBT. A autora, uma pessoa maravilhosa, não me levou a mal. Mais tarde disse-me que imaginou, com o meu erro, que eu percebia pouco do assunto e que o meu interesse assim até se tornava mais bonito. Não me lembro das palavras exatas, mas na minha memória pairam adjectivos como fofo ou inocente.
Agora (em muitas universidades americanas), um erro não tem nenhuma presunção de inocência e dificilmente é encarado com ternura. Eis o que se encontra na secção de perguntas frequentes sobre pronomes de género da Universidade de Wisconsin:
“A lot of the time it can be tempting to go on and on about how bad you feel that you messed up or how hard it is for you to get it right. Please don’t! It is inappropriate and makes the person who was misgendered feel awkward and responsible for comforting you, which is absolutely not their job.”
Quando há um erro de “misgendering” (de atribuição de género) há duas hipóteses. Ou se é insensível, porque não se aceita que se magoou uma pessoa. Ou se magoa a pessoa porque se foi demasiado sensível e agora a vítima do nosso erro nos tem de confortar. Temos apenas a escolha de como pecar.