#000247 – 21 de Julho de 2020
Kafka, Pessoa, Saramago. Cada um deles trabalhou num escritório. Soube o que era usar a linguagem burocrática, passar o dia a escrever lugares comuns, a dizer por muitas palavras coisa nenhuma, a fazer da língua uma forma apurada de incomunicação.
Esse quotidiano, longe de os limitar, talvez tenha gerado ferramentas literárias. A figura do funcionário apanhado nas teias da burocracia é algo que dizemos ser kafkiano. Pessoa, em Bernardo Soares, tem uma espécie de continuação de si mesmo, um ajudante de guarda-livros que Fernando Pessoa explica assim: “Não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade”. Em Todos os Nomes, a personagem principal é escriturário num cartório, que poderá ter sido construído com elementos do tempo que Saramago passou a trabalhar como funcionário público.
Lembro-me destes exemplos e de um outro. Octavia E. Butler, no prefácio a um dos seus livros, conta como durante anos se levantava às 4 da manhã, para escrever, todos os dias. A seguir ia trabalhar como operária numa fábrica. Conta ainda que era livre. Escrevia o que queria. Podia sustentar-se. Chamava a isso liberdade.