#000275 – 19 de Agosto de 2020

Dizer uma coisa e o seu contrário. Acreditar nas duas e deixar de o fazer se para isso vier uma ordem. Em 1984, o duplopensar é parte do aparelho opressivo do regime. Garante que a verdade seja constantemente manufacturada. Que a história se faça com um pragmatismo extremo que serve sempre o poder. Pensar ao mesmo tempo uma coisa e o seu contrário encontra um paroxismo nos odiosos slogans “war is peace / freedom is slavery / ignorance is strength.”

Hoje, dizer uma coisa e pensar o seu contrário tem um peso completamente diferente. As direitas (populistas, alt-right, fascistas e neonazis) negam o que pensam, acusam de fake o que é real e usam fake para produzir propaganda. Longe de se enfraquecerem pelo uso de mentiras evidentes, há um efeito pernicioso, nesta era de cinismo e descrença. A própria mentira (e a produção de propaganda) é usada como operação de cumplicidade. Os seguidores são “os que sabem”, os que tomaram a pílula vermelha, os que produzem mas não são alvo de propaganda. Foram inoculados pelo cinismo, estão imunes.

De facto, começa a haver um bizarro apropriamento da palavra razão pelos defensores do autoritarismo. Ao mesmo tempo que fazem uma guerra de memes, teorias da conspiração, difamação e no limite ameaças à vida dos opositores, apresentam-se como os detentores da lógica irredutível, das ferramentas racionais que antes eram o farol dos humanistas. Este jogo duplo cria muitas armadilhas. Mas acredito que não se pode combater propaganda com propaganda.

Franco Berardi, entre outros, convida-nos a sabotar esta máquina semiótica que se tornou a própria estrutura do poder e da violência. Não sabemos ainda como, mas há que criar espaço para a sanidade. É necessário um espaço público, para ideias livres. As redes sociais são espaço privado. Há que defender a realidade. É verdade que a direita parece enferma de um realismo absoluto que nunca hesita em apontar o dedo ao “relativismo cultural”, a tudo o que é múltiplo e fluído. Não há que ter medo destas acusações. Tudo indica que a realidade é fluída, múltipla e complicada. Isso não significa que não existe. A extrema direita usa um truque de magia. Porque a sua espinha dorsal é o cinismo niilista, acusa os outros de negarem a realidade para a seguir apresentar uma realidade manufacturada à medida da sua ideologia.

O realismo especulativo de Graham Harman defende que a realidade existe, simplesmente não a podemos conhecer. Diz que o mundo em que vivemos não é um mundo pós-verdade, é um mundo pós-realidade. O que está debaixo de fogo é a realidade, negada a pés juntos por milhões de pessoas. Harman diz que é a arte que consegue, de forma indireta, descrever o que é real. Nunca precisámos tanto, como hoje, de poesia insubmissa, de música e ficção e tudo o que é arte feita em liberdade com um horizonte humano. Qualquer sociedade saudável precisa ainda de compaixão, espaço para a dúvida e uma firme recusa da violência.