#000279 – 23 de Agosto de 2020
Leio “Hope Against Hope”, de Nadezhda Mandelstam. Foi publicado 17 anos depois de “Fahrenheit 451”. Mas é-me impossível apagar a impressão de que são as memórias de Nadezhda que, em perspectiva, informam a distopia de Ray Bradbury.
A poesia de Osip Mandelstam levou o escritor russo a ser perseguido pelo regime estalinista. Os poemas eram passados entre amigos, numa conspiração a favor da arte e da liberdade. Como George Steiner refere, em defesa da memória, o que fica dentro de nós não nos podem tirar. Os amigos de Mandelstam decoravam poemas para os ensinar a outros que os continuavam a passar, numa corrente de memória humana.
O amor e o pessimismo de Nadezhda Mandelstam permitiram, ainda assim, que mais poemas fossem salvos. Nadezhda escreve nas suas memórias que não acreditou, como Osip, ser suficiente decorar a poesia e passar a outros para que decorassem também. E por isso traficava manuscritos, em quantidades pequenas, para que pudessem ser preservados contra a iniciativa orwelliana do regime. Alguns poemas salvaram-se, o poeta não. Morreu.
Hoje, estamos inundados em texto e imagem. Até a verdade nos chega, através de figuras como o Snowden e Assange. São figuras como estas que o poder agora persegue como se fossem inimigos da humanidade.
A dificuldade não é preservar o que se escreve. Tudo é copiado inúmeras vezes, transformado em dados e metadados e usado na economia digital. A dificuldade está no lado do leitor. São os livros que começam a ler-nos. A aplicação Kindle sabe que citações partilhamos, que palavras buscamos no dicionário, que notas fazemos, que páginas nos fazem fechar ou mesmo desistir de um livro, que páginas viramos com mais rapidez. Hannu Rajaniemi trabalhou há quase 10 anos num neurolivro com a empresa Emotiv – um livro que se adapta às nossas reações neurológicas, mudando a história de acordo com a leitura feita ao nosso sistema nervoso central.
Franco Berardi, em “Heroes: Mass Murder and Suicide”,
é de um pessimismo alarmante. Diz que é impossível derrotar a máquina semiocapitalista. Que nos resta resistir no último reduto de liberdade cognitiva. O nosso íntimo. Resta-nos resistir a esta invasão distópica do nosso organismo.
Os escritores sci-fi podem, em perspectiva, ser vistos como Cassandras (que afinal anteviram os males futuros) ou Velhos do Restelo (que pregaram contra transformações benignas). Mas o papel mais importante, o único que vale a pena levar a sério, é o de escrever para o presente, sobre o presente.