#000283 – 27 de Agosto de 2020

Uma boa parte da literatura fala de dor. Já online, mesmo durante uma pandemia, os perfis são uma construção forçada do optimismo. Passar olhos pelo Instagram, num Agosto de crise mundial, é ver fotos de vidas cheias de sorrisos e sol. É escutar centenas de gurus de auto-ajuda. Cada utilizador é o seu próprio coach. Uma boa metade dos posts nestas redes chamadas sociais são textos de um infinito scroll de conselhos sobre como ultrapassar as dificuldades. Este discurso não surgiu na pandemia. É o próprio tema de fundo das redes sociais.

Mesmo recentemente, quando via a promoção de um filme sobre um atleta que faz bodysurf, lá estava. Kalani Lattanzi enfrenta ondas de 15 metros apenas com barbatanas. Faz surf com o corpo em ondas que mesmo com uma prancha intimidam. No fim de um teaser, vejo Kalani mergulhar para evitar a montanha de água branca de uma onda na Nazaré. Uma imagem assustadora, que geralmente vemos quando um surfista caiu, mas que para Kalani é normal, já que ele se mete ali sem prancha. Vou ler o texto que legenda o vídeo no Instagram e lá está esta linguagem, algo do género: que esta história sirva para inspirar todos aqueles que desistem à primeira.

A dor precisa de tempo. A escrita é essa lentidão, coisa que acaba num momento bem diferente do seu início. Escrever tem essa escala, que cicatriza. Mas as redes sociais são o instante. E ninguém quer um retrato infeliz, um instantâneo de ansiedade. O polegar faz scroll no ecrã para buscar uma dose rápida de dopamina, na slot machine química do ecrã.