#000310 – 23 de Setembro de 2020
HAL lembra-nos uma era de relativa inocência. Há décadas atrás, acreditávamos que os efeitos nefastos da tecnologia de computação seriam completamente evidentes. No filme de Kubrick, HAL não tem sequer capacidade de influenciar os humanos. É um inimigo, não um persuasor. As decisões a tomar pelos humanos são claras, sem ambiguidade. A própria voz de HAL carrega a consciência das suas limitações: “I'm sorry Dave, I'm afraid I can't do that” é uma afirmação de autonomia, em que o eu da máquina se evidencia. Mas está muito longe do poder actual da tecnologia digital, que influencia o nosso comportamento “para nosso bem”, para melhorar a qualidade dos serviços prestados. E não se anuncia como adversário. Antes muda o que somos para estarmos em consonância com objetivos de terceiros. Esta influência não é uma escolha nossa. Como todas as perversões do poder, tornou-se uma característica da estrutura repressiva. Em 2001 Odisseia no Espaço, ficamos com a certeza que HAL está a funcionar mal. Actualmente, é-nos dito que nós, humanos, é que estamos a falhar, somos peças que resistem a encaixar. Já a computação tem sido naturalizada, como se fizesse parte da evolução. Do poder pernicioso da tecnologia digital sobre as nossas vidas, em inglês dir-se-ia que é “a feature, not a bug” e em português, com um sarcasmo melancólico, que “não é defeito, é feitio”.