#000362 – 14 de Novembro de 2020

Esquecer. Talvez um luxo, provavelmente um conceito datado, já ele próprio em vias de esquecimento. O Google Photos lembra-nos o que aconteceu há um ano. O Google Lens aponta a nossa câmara a um objeto e diz-nos o que o objeto é, quanto custa. O Shazam diz-nos qual o nome da música que toca, quer a trauteemos, quer passe na rádio ou num bar. A Alexa, o Siri e o Assistente Google, incorporados em colunas, lembram-nos do que está na agenda, do que temos de fazer, de quem nos espera. O Facebook e o Google recordam-se muito bem do nosso comportamento através das páginas web, insistem em vender-nos coisas depois de um clique ou visita mais demorada. A Amazon sabe tudo sobre o tempo que demoramos a fazer scroll, os produtos que compramos com mais impulso ou mais tempo, quanto da nossa vida online passamos a comparar opções, que itens deixamos no carrinho de compras. Os smartwatches e mesmo os telemóveis sabem onde andamos, qual a qualidade do nosso sono, quantos passos damos e onde. Na China, o rosto das pessoas é conhecido em detalhe pelo software de reconhecimento facial. Quer seja usada a nosso favor ou se processe em bastidores que desconhecemos, a informação sobre o que fazemos e publicamos online, mesmo as minúcias de cada instante, é cada vez mais permanente, quase imperecível.

O que mais recordo são as coisas que adquiri com muito esforço e bastante acaso. Um dia, no início da minha adolescência, via a MTV. Nesse tempo, no final da década de 1980, era um ainda canal de música, não de reality shows. Um amigo tinha uma antena parabólica: em vez de 2 canais de televisão, tinha dezenas. Só de música, além da MTV, havia a MCM e a VH1. A música aliás, era incessante. Só de vez em quando é que se interrompia, para se falar acerca de ou com músicos. Numa rubrica que repetia ao longo do dia, “MTV 3 from 1”, passavam três canções seguidas de uma banda, sem interrupções nem publicidade. Isto foi antes de se generalizar o uso da internet, por isso ver televisão era assistir a uma transmissão, como olhar para um rádio que também tinha imagem. O comando só desligava o televisor, subia e baixava o volume ou mudava de canal. A banda que recordo chamava-se “Sugarcubes” e a única canção que não esqueci era “Birthday”. Não pude saber nem encontrar onde saber mais nada. O refrão da canção não tinha letra, assentava na voz quebrada, meio frágil meio insubordinada da vocalista. Quando, a meio de 1993, surge o videoclip de “Human Behavior” no Top + quase me assustei de feliz. Chamava-se afinal Björk a dona daquela voz estranha e maravilhosa. Foi de forma quase semelhante que descobri que o Parkour tinha esse nome. Antes ainda de ver o filme de 2001 Yamakasi, com vários dos fundadores da modalidade, vi a segunda parte de uma reportagem na televisão portuguesa a praticantes em Portugal. E não pude saber que nome tinha aquele conjunto de movimentos. Para se ter uma ideia de como tudo estava ainda no incício, David Belle tinha 27 anos e Sébastien Foucan 26. Foi só depois de já ter comprado o meu primeiro computador, em 2003, que finalmente pesquisei no google imensas variações de palavras chaves. Foi algo como “urban acrobatics sport” que me deu o nome Parkour. Agora temos o precioso club540.com que eu desejo inspire, na sua simplicidade de biblioteca de movimentos, todas as artes do corpo, das marciais à dança, passando pelos desportos da agilidade como a ginástica ou o Chinlone.

Gosto francamente de tecnologia digital e tenho prazer no uso de gadgets. Esta direção em que tudo surge já pré-digerido talvez não seja inevitável, mas é dominante. Por enquanto todas as pequenas interacções com ecrãs começam ou são fortemente influenciadas pelo software, não pela nossa vontade consciente, como bem nos avisa o Center for Humane Technology. Sinto-me como se tivesse, a cada instante mediado por ecrãs, uma babysitter digital que precisa, que de facto ganha dinheiro, com a minha atenção. Gosto da sua imensa biblioteca de factos. Mas só existe a história do parágrafo anterior porque se passou numa altura em que a informação era escassa ou lenta. A tecnosfera que vai envolvendo a Terra e, com a Starlink de Elon Musk, a própria exosfera do planeta, poderá estar a acabar com a viabilidade do conceito (ainda tão adolescente) de serendipidade.