#000416 – 06 de Janeiro de 2021

Estado de emergência. Tirando o genérico dos noticiários, para quem tem a sorte de poder continuar a trabalhar em casa, há uma certa dissonância cognitiva que erode as intuições mais primárias. A linguagem institucional para designar estas medidas de exceção para lidar com crises nacionais é alarmante, sóbria, urgente. Trabalhar em casa de pijama, sair à rua e ver pouca gente, usar máscaras a imitar focinhos de animais, tudo isto tem um sinal emotivo contrário. O confinamento também nos isola das emoções de grupo, entre elas o pânico das multidões. O prolongar desta forma temporária de viver normaliza a distância. As festas que juntam milhares de pessoas, com a sua flagrante desobediência às cautelas e às regras excecionais preocupam-me. Podem ser já um sinal que algumas pessoas sentem falta dessa transgressão, que lhes mostra terem ainda alguma força de afirmação pessoal. Foi aliás este impulso, em si saudável, de resistir a quem nos restringe o movimento, que os populistas como o Trump canalizaram. Estes políticos, de forma criminosa que implicou muitas vidas perdidas, fizeram da atitude perante a pandemia um campo de batalha. A posição mais sensata é também a mais desconfortável: é a aceitação do conflito interior em relação a imperativos maiores que o eu e a convivência com tensões. Nada disto é natural nem deve ser naturalizado. A negação não é uma forma de rebeldia, é uma forma teimosa de cegueira. Em emergência estão milhares de pessoas, as que lutam pela sobrevivência em unidades de cuidados intensivos sobrelotadas, as que perderam o emprego e condições mínimas de vida. Enfrentar este problema de frente é difícil porque à nossa frente temos apenas ecrãs. E um rosto humano e um corpo à distância de abraçar são o imperativo maior de qualquer ética.