#000479 – 10 de Março de 2021

Neal Shusterman surpreende-me. Escreve para o público juvenil, mas a sua ficção distópica aborda a morte e a crueldade. Em histórias como as de Hunger Games e Divergent, seguimos heróis adolescentes atirados para a aventura de sobreviver à perfídia. Katniss Everdeen é um tipo de personagem muito diferente de Winston Smith. E o ambiente de 1984 é muito diferente do ambiente de Hunger Games. E em Shusterman?

Os protagonistas desta onda de distopia juvenil (em que não incluo Shusterman) são esculpidos à imagem do que os donos do mundo actual nos pregam: “sai da tua zona de conforto, faz da crise uma oportunidade”. Katniss torna-se uma estrela ao aceitar o papel que o regime opressivo lhe impõe. O seu dilema, ao longo da série, é o conflito entre a sedução da mão que lhe dá de comer e as suas origens precárias.

Já Winston vive numa narrativa sufocante. Fraco, doente e incapaz de impulsos heroicos, é a perfeita imagem da derrota do indivíduo perante o poder. Seguimos as peripécias em Hunger Games com entusiasmo, mas a história em 1984 faz-nos sofrer. A distopia, atualmente, é a irmã siamesa da utopia. A prosperidade é uma excrescência de um corpo maior chamado miséria. Em Elysium, uma parte ínfima da humanidade vive num paraíso tecnológico, a quilómetros do chão do planeta. E todo o resto da humanidade vive em absoluta miséria. Esta premissa do filme de Blomkamp é apenas uma hipérbole do mundo em que já vivemos.

Shusterman atreve-se a escrever histórias young adult que colocam questões incómodas. O seu tom é ainda assim de aventura, açucarado e cheio de acção. Mas é exactamente o contrário de escapismo ou de uma inadvertida apologia do pior que já vivemos. É um espinho em forma de história, que nos obriga a sentar e descalçar o sapato do pensamento habitual. Fico a pensar que talvez haja mais ficção juvenil assim e que apenas um preconceito meu me tem impedido de a descobrir.