#000696 – 25 de Julho de 2021
Backxwash faz-me tremer. Atinge-me a aspereza das palavras, vulneráveis e violentas. Prende-me o olhar aquela presença em palco, rodeada de fumo e uma simplicidade de filme de terror a preto e branco antigo. Aquilo que nos vídeos de ContraPoints é sarcasmo e subtileza, na música de Backxwash é punk e murro no estômago. Estas mulheres vivem na pele o que Beauvoir nos lembrou, “On ne naît pas femme : on le devient”. O processo por que passa uma mulher transgénero tem tudo para estar próximo das lutas feministas. Fico triste, assustado mesmo, com a animosidade que nasceu nos EUA entre diferentes grupos ativistas que só perdem em se esquecer que a sua luta é a mesma. Sendo homem, ou nem sabendo o que é isso de ser homem ou como me torno homem, vejo de fora, confuso, perco coordenadas e tento lembrar-me ainda que as causas são comuns, todas as causas humanas de emancipação são por natureza comuns a todos os humanos. “Injustice anywhere is a threat to justice everywhere. We are caught in an inescapable network of mutuality.”, nas palavras de Luther King.
Começam a aproximar-se eleições em Portugal e fico ansioso. Até aqui começou a política a ficar infetada desta separação artificial entre o credo da política de identidade e tudo o resto. Este muro é muito perigoso porque alinha os agressores com as vítimas (a extrema direita, sobretudo a aceleracionista, também é identitária e quer que tudo seja definido em termos de raça e nação) e afasta aliados naturais. Nos EUA alguns liberais juntaram-se a conservadores, numa tépida “alternativa” ao discurso vigente. Basicamente, puxaram o centro político ainda mais para a direita e usaram a capacidade que o capitalismo tem de mercantilizar as próprias aspirações políticas das pessoas. Simplificam, dizendo que o que se passa é “um extremar de posições”, e com isso parecem sugerir que o debate político deve ser uma conversa amena, em que só falamos dos pontos em comum. Isto é também um sintoma da degradação da nossa intuição democrática. A dissidência caminha para uma quase-criminalização e simples diferenças de opinião são vistas como ataques pessoais. É má a forma como os grupos identitários fazem disto arma, mas também não é boa a ideia dos liberais americanos de evitar ideias que ponham em causa o consenso.
A expressão Free Speech é muito feliz, mais do que Freedom of Expression. É disso que precisamos: de, em conversa, em debate formal ou discussão informal, em espaço público podermos ter um discurso livre. A ideia que a liberdade é sobretudo a liberdade de expressarmos quem somos, que identidade e emoções nos definem é limitada e não tem grande alcance político. Como alguém disse, um bom teste a fazer a um regime democrático é que este permita ser posto em causa. Sabemos, por exemplo, que estamos na presença de um regime ditatorial quando os cidadãos não têm forma de depor o governo pacificamente (com eleições, por exemplo). Isto faz parte uma ideia mais ampla, que a ciência já defende há mais tempo. Precisamos deste talento precioso e que sempre esteve debaixo de ameaça: a capacidade de argumentar contra uma ideia e de esta estar sujeita a caducar. Liberdade, entre outras coisas, é termos sempre a possibilidade de nos defendermos, pacificamente, com a inteligência de que formos capazes. De usarmos, como no título do livro de Suzette Haden Elgin, “The Gentle Art of Verbal Self-Defense”.