#000815 – 21 de Novembro de 2021

Tenho uma narradora que trabalhou para uma ditadura. Não é boa pessoa, embora tenho tido um ato de rebelião contra o regime. É um desses narradores em que não se pode confiar. Tenho-me preocupado demasiado com o que está à volta da escrita. Na história que escrevo não há nenhuma personagem moral, uma espécie de voz da consciência do livro. À Dulce Maria Cardoso, uma vez disseram que O Retorno nunca seria publicado no Canadá, por isso. Vivemos tempos em que lidamos mal com a ficção. Somos tão cínicos e paranoicos e dependentes da validação de estranhos que estamos enfermos de uma insegurança paralisante. Perante o discurso de uma personagem, temos que ter alguém que nos diga se aquilo vem dos bons ou dos maus. A ambivalência, a subtileza, o paradoxo são vistos como defeitos morais, não como barro artístico. Assim as personagens só se podem tornar uma triste reflexão dos valores morais que queremos pregar aos outros. Continuo a escrever as histórias, mas não sei qual é o futuro da publicação quando o mundo sci-fi, entre todas as subculturas literárias, se tornou tão normativo e moralizador. Não sei, não sei nada. Por isso escrevo, porque a escuridão é insuportável.