#000847 – 23 de Dezembro de 2021

Entre cliente e funcionário a cortesia assenta num fingimento: o de que se fala entre iguais. A linguagem transmite uma sofisticada naturalidade de duas pessoas que reconhecem uma na outra a mesma boa fé. É uma falsidade mas benigna, como a de qualquer ficção com bom fundo. Zizek acrescenta que as boas maneiras são um jogo em que ambas as partes sabem que estão a reproduzir papéis já estabelecidos. É uma forma protocolar de diplomacia interpessoal. Nesse sentido, é uma hipocrisia salutar. Um fingir-se gratidão, agir como se o interesse da outra pessoa nos importasse. Para Zizek, é o esforço de fazer esse fingimento que é ético. É o que nos permite conviver. É verdade que é uma posição que nos parece conservadora. Mas pior ainda é aquilo que, de facto, acontece quando o trato entre cliente e funcionário não respeita essas convenções. Há uma verdade que vem ao de cima, mas em forma de hipérbole com terrível peso histórico. O cliente, pela linguagem e tom, mostra que a sua indignação ameaça a segurança laboral do funcionário. Há um cheiro a feudalismo e uma expectativa de subserviência. O fingimento habitual é o que permite que, por vezes, se sinta de forma genuína calor humano e proximidade. A verdade feia sempre à mão vem ao de cima para eliminar, a quem é precário, qualquer ânsia demasiado livre. A realidade é assim, bem mais confusa que a clareza moral com que nos educaram.