#001021 – 15 de Junho de 2022

Talvez seja isto que me mostra que regressei à cidade. Depois do regional, mudo para o comboio urbano em Nine. Em São Romão, o comboio fica parado uns 15 minutos. A meu lado tinha-se sentado um guna. Entrara há duas paragens, também com uma bicicleta. Ao todo, está sentado no comboio há uns 20 minutos. Fica muito impaciente. Bate com os pés, começa a falar alto. Bate à porta do maquinista. Ameaça desatar aos pontapés à porta.

Em frente a ele, um rapaz, que tinha estado absolutamente tranquilo, abraçado ao seu monociclo, é por ele ameaçado. Durante um ou dois minutos, o guna diz-lhe que se não gosta, que saia do comboio, que vai fazer o barulho que lhe apetece e que ele, o rapaz do monociclo, também devia estar farto daquela brincadeira. O monociclista não chegou a falar. Imagino que o guna não gostou do olhar dele. A mim também me tinha intimidado, quando eu tinha espreitado qual a próxima paragem e o guna estava no meu campo de visão. Talvez tenha pensado que ia olhar para ele, porque se virou para mim muito rápido como para antecipar um olhar de desafio. Isto foi antes do seu espetáculo de impaciência começar, ainda estava o comboio em movimento. Somos um trio bizarro, de um circo disfuncional. Eu, gordo e encharcado, com uma bicicleta com alforges. Um guna enfurecido, com uma bicicleta de montanha, a sapatear com violência no chão do comboio. E o rapaz alto, atraente, que consulta o Instagram, segurando o monociclo entre as pernas, num abraço cheio de descontração e estilo.

Eu mantenho o olhar no chão, o corpo relaxado e quase imóvel. Leio o meu ebook da Hannah Arendt. Recordo-me que o guna também tinha sido um pouco teatral ao se sentar a meu lado, ajeitando a bicicleta com gestos desnecessariamente largos, como se a minha estivesse no caminho, soltando ar entre os lábios de forma ruidosa, como quem se desaponta muito ou é incomodado de repente.

O revisor entra e os insultos sobem de nível. 15 minutos de atraso (o comboio vai partirá quase de seguida, assim que o interregional passa por nós) e agora o guna pôe-se a dizer que a CP é sempre assim, que devia acabar, que a guerra devia aqui chegar e rebentar com tudo. Tento, na minha cabeça, encontrar uma explicação. Que roubou a bicicleta e que estava a contar vendê-la para ter uma dose de heroína rapidamente. Ou que o dia lhe correu muito mal, ou que tinha mesmo que chegar ao Porto rapidamente, por um motivo pessoal. Tudo isto me ajuda a mim, para que me mantenha calmo e não o provoque, nem que seja com um movimento mal interpretado. O meu silêncio e falta de resposta ou conversa é a regra. Ninguém ali se dirige a ele, ou olha para ele. Penso que há uma consciência geral de que uma insignificância poderia desencadear violência da sua parte.

Eu saio umas paragens à frente e ele desvia a bicicleta. É a única vez que olho para ele nos olhos. Agradeço-lhe, talvez com uma voz medrosa. Estou muito cansado depois de pedalar à chuva entre Valença e Caminha e de fazer uns 70 quilómetros em menos de 48h. São 14h30 e ainda não almocei, dormi mal, sinto-me velho e não sou nenhum atleta. Pior: sou uma pessoa muito impaciente. Acho que houve um sério perigo de eu me dirigir a este homem, também eu com uma voz zangada e de descarregar nele o meu cansaço. O esforço físico que fiz durante dois dias tinha-me deixado mais feliz, mas este exercício de contenção durante 25 minutos deixou-me exausto e agitado por dentro. Ainda me lembro de alguns detalhes das suas feições. O guna tinha, no pouco de rosto que a máscara relevava, muitas rugas, um ar de quem envelheceu 20 anos além da sua idade devido à adição. Era magro, tinhas as costas curvadas e parecia já tranquilo, estava calado. O seu gesto de me deixar passar foi automático e creio que gentil.