#001085 – 20 de Agosto de 2022
A série The Boys trata os super heróis de uma forma interessante. Não me lembro de assistir a outra série que tivesse conseguido digerir tão bem a reflexão sobre a figura do superherói. Há muito tempo que heróis como Batman e Judge Dredd são alvo de crítica pelo papel que o super-herói tem na história. O Superhomem tinha, pelo menos originalmente, algo de semideus, e os supervilões seus inimigos, algo de semidemónios. A sua luta poderia ser entendida como uma personificação da luta entre o bem e o mal, em que os humanos não participam diretamente, embora possam sofrer danos colaterais. Isto em si já me faz desinteressar por este tipo de histórias. Mas a seguir o superherói mudou. Batman é um vigilante. Faz o trabalho sujo que a polícia não tem mandato para executar. É um castigador que defende, nas sombras, o status quo. Imagino-o como o perfeito herói de milícias ou grupos paramilitares, que têm o mesmo papel oficioso, o de defender com uma violência sem limites a ideologia dominante. Judge Dredd leva tudo ainda mais longe. Uma vez que torna institucional a violência sem limites legais ou morais. Tem o poder instituído de prender, sentenciar e executar alguém. Poderíamos até afirmar que este é, precisamente, o seu superpoder, o de poder matar alguém sumariamente sem consequências. É o herói perfeito para as distopias de Heinlein (como na história Friday), infernos violentos em que se aplicou a ideologia dos libertários de direita americanos.
É verdade que os últimos 20 anos mostraram, da parte de quem escreve este tipo de ficção, alguma reflexão sobre a figura do superhumano. Temos frequentemente anti-heróis, personagens que tomam más decisões, que têm uma moralidade suspeita ou simplesmente humana, cheia de erros. É o que acontece com Hancock, de 2008. Tornaram-se muito populares, mais recentemente, histórias em que o foco é na celebridade do superherói, na operação de relações públicas à sua volta, na gestão das redes sociais. Esta tendência talvez tenha tido origem em Watchmen, de Alan Moore, que foi publicado em fascículos nos anos 80. Moore incluiu na história a gestão da imagem pública da equipa de superheróis, de forma a contrastar essa fachada que é publicitada com o que se passa na vida privada dos heróis.
Em certo sentido, The Boys vem dessa tradição de que Alan Moore foi pelo menos um dos pioneiros. The Seven, o grupo de superheróis retratado, é uma marca construída e gerida para obter lucro por um poderoso grupo económico. O seu líder é uma figura narcisista e extremamente perigosa. Há criticas muito evidentes à forma como o patriotismo e a violência se associam. A certa altura uma das personagens é revelada como ex-membro do partido nazi, que tenta usar os seus superpoderes para estabelecer um quarto reich. Se a crítica a Batman fala de uma espécie de criptofascismo, com estes heróis a psicopatia e o fascismo são bem mais do que metáforas, são a sua própria estrutura emocional e ideológica. Quem escreve os episódios tem uma visão muito lúcida sobre as atuais tensões americanas entre a alt-right e a política identitária de esquerda. Há momentos deliciosos. Vemos, nuns casos, a construção de discursos para agradar à direita e noutros casos da linguagem identitária elaborada para agradar a eleitores liberais.
Há algumas limitações neste modelo, e às vezes fica-se com uma ideia de que os escritores da série levam a sério o conceito de “classismo”, que a política identitária dos liberais americanos gerou. Esta ideia de que o verdadeiro problema de termos pessoas com muito poder e pessoas com poder nenhum é um problema emocional. Tudo se resume a isto: há pessoas que pensam que são superiores aos outros, porque têm mais dinheiro, mais influência, mais poder. É um conceito análogo à sua concepção de racismo: acreditam os liberais que o racismo é o sentimento de superioridade de algumas pessoas sobre outras com etnias diferentes. Dizem as irmãs Fields que o racismo não é o sentimento que umas pessoas têm sobre outras, não pode ser resumido assim. O racismo, afirmam as autoras, é um conjunto de acções concretas e a ideologia que as defende. Da mesma forma, não é tão importante assim se um bilionário se sente ou não superior aos pobres. O que interessa é o que ele consegue concretamente fazer com o poder que tem e a forma como a ideologia o protege a ele e impede os pobres de prosperarem.
Às vezes fico com a sensação de que se conseguia resumir esta série como um conjunto de seres com capacidades excepcionais que não têm capacidade emocional de as gerir. Como têm acesso a muito poder, são corrompidos pelo poder. De facto as personagens boas, que são a excepção, visto que o superheroi é quase por definição um vilão, são diferentes sobretudo de forma emocional. Na série, as personagens éticas não têm ambições ideológicas sólidas que permitissem mudar o sistema. O que propõem é, à maneira liberal americana, deixar o sistema intacto, mas colocar pessoas boas a liderar. A única tentativa de que me lembro de uma história de superheróis com mais alcance político é “The Movement”, de Gail Simone. O primeiro volume tem o sugestivo nome “Class Warfare” e os superheróis aqui têm inspiração do movimento Occupy Wallstreet. Ainda assim, na altura em que comecei a ler, não me pareceu muito interessante a história, nem sequer assim tão diferente das histórias tradicionais de superheróis. Não consegui acabar. Em conclusão, não espero muito, até há bem pouco tempo não esperava nada, deste género. Por isso The Boys me surpreende e agrada, foi fácil suplantar a má ideia que eu tenho das narrativas de superheróis.