#001240 – 25 de Janeiro de 2023

Num reality show do Netflix uma rapariga autista diz algo fascinante. Parafraseando um pouco: “num mundo perfeito não seria necessário refrasear tudo para que um neurotípico possa compreender quando a frase inicial foi perfeitamente clara”. Algo que é curioso é que esta frase é ela mesma um exemplo daquilo a que se refere. Como entre neurotípicos a parte emocional da linguagem tem primazia, facilmente esta frase é recebida como uma crítica. Aliás, numa conversa aquilo a que a maior parte das pessoas dá atenção é a intenção, o tom, as motivações emocionais e tudo o que não é conteúdo direto do que foi dito. Esta frase pode ser entendida como se a pessoa que a profere estivesse a dizer que um neurotípico não tem capacidade de entender uma simples frase. No limite, pode dar azo a que quem a escuta pense que se está a pôr em causa a inteligência dos neurotípicos. Nada disso.

Aquilo de que se queixa a rapariga é do esforço e da frustração de, depois de ter dito algo de forma literal e objectiva (ou seja, perfeitamente clara), ter de dar grandes voltas e re-explicar o que já está dito de forma direta e simples. Por outras palavras, ter de limpar a atmosfera de ambiguidades e ocultos sentidos que existem na cabeça de quem escuta e não na frase. Isto acontece-me diariamente. Desconfio que estou dentro do espectro do autismo por isto também. Porque sou tendencialmente literal, uso as palavras para dizer o que elas querem dizer. Gosto da escrita por isso mesmo. Porque quem me lê não tem o meu rosto, nem os meus gestos nem o meu tom de voz. E a linguagem tem em si mesma a beleza de uma construção lógica.