#001254 – 08 de Fevereiro de 2023
Tenho notado que são cada vez mais frequentes análises ao conteúdo de um livro feitas de forma superficial. O tipo de críticas a que me refiro geralmente avaliam simplesmente quão representativo da sociedade é o conjunto das personagens da história. É feito um julgamento moral se a história for considerada pouco representativa. É talvez uma forma de trazer para a literatura de massas uma abordagem há muito usada para criticar filmes de Hollywood.
Não me estou a referir ao Teste de Bechdel, que foi sugerido pela autora de BD Alison Bechdel. Este é de facto útil, embora obviamente seja uma abordagem geral. Diz a premissa do teste que se uma história não tiver pelo menos duas mulheres a conversar sobre algo além de homens, isso é um indicador directo de que a história é sexista em relação às mulheres. Penso que é um teste que os próprios escritores podem ter em mente ao escrever histórias sobre homens e mulheres. Não há nenhum bom motivo para que as mulheres numa história que se refere também a elas não tenham voz própria, personalidade, consciência de si, autonomia, complexidade.
Aquilo que me preocupa é o julgamento moral de uma história sem o seu contexto. Por exemplo, uma história sobre um hospital psiquiátrico para mulheres no início do século XX, pode optar por ter apenas personagens femininas. Pode haver uma premissa para uma história destas em que nenhum dos médicos do sexo masculino é personagem. E assim são de propósito removidos da história pelo autor, para reforçar a ideia de que a história é contada do ponto de vista das mulheres. Isto poderia ser precisamente uma forma de trazer ao de cima as vozes das vítimas que foram silenciadas por práticas médicas que faziam parte de uma sociedade patriarcal agressiva, que dava aos homens o poder de internar uma filha, uma esposa, uma mãe, uma irmã simplesmente porque sim, sem nenhum fundamento médico. Foram os tempos em que um diagnóstico de histeria era uma arma contra as mulheres.
Um exemplo mais banal, mas perfeito, é o da banda desenhada Peanuts, criada por Schulz (Charlie Brown é a personagem principal). Os adultos não fazem parte da história, propositadamente, embora apareçam em boa parte das cenas, mas sem voz nem protagonismo. Não têm voz inteligível. Esta estratégia serve um propósito que não é, obviamente, o de discriminar os adultos. Da mesma forma, um autor que queira expor a violência de um grupo político, pode contar uma história em que as vítimas não têm voz, como reforço da ponto de vista dos agressores, para este tenha mais impacto no leitor. É verdade que é uma táctica de risco que pode não funcionar, mas não é, só por si, indicadora de má fé por parte do autor.
Nestes três exemplos, em que a narrativa é tão desiquilibrada no ponto de vista que privilegia, talvez as coisas sejam mais claras. Ou rejeitamos completamente a abordagem do autor, ou achamos que faz sentido e ajuda a contar a história. Mas a maior parte das histórias não têm contrastes tão grandes. O que têm em comum com estes exemplos é que o contexto é tão importante como o conteúdo. Não faz muito sentido analisar uma história contando ingredientes e julgar o autor pela insuficiência de uns ingredientes em relação a outros. Esta tendência preocupa-me como autor mas muito mais como leitor. Quero ler histórias ousadas estilisticamente, quero abordagens novas. O pior que me podia acontecer como leitor seria ver a maior parte dos autores a terem receio de que uma boa intenção seja recebido como o seu oposto, como um pecado ético, só porque o estilo não é convencional.