#001306 – 01 de Abril de 2023
Aprendo hoje algo que me horroriza. Algumas editoras começaram a empregar “leitores de sensibilidade”, que detectam passagens em livros que depois serão removidas da versão final. Isto começou com livros que foram escritos há algum tempo atrás, quando as sociedades de então não partilhavam dos nossos valores e cujas versões actuais são assim censuradas e revistas.
Fico alarmado. O tom e a linguagem do discurso de uma personagem de há 100, 200 anos atrás é absolutamente essencial para compreendermos a época. Exactamente porque condenamos todas as formas de racismo e colonialismo, sexismo e homofobia e qualquer discriminação baseada nas características reais ou imaginadas de uma pessoa ou um grupo, devemos proteger o texto original.
Por exemplo, para sabermos como os portugueses se viam como colonizadores menos cruéis que os ingleses e por isso se achavam legitimados na forma como dominavam os povos colonizados, basta ler os textos da época. Se editarmos esses textos, suprimindo linguagem ofensiva e removendo qualquer frase ou palavra discriminatória, passámos a fazer do texto uma mentira que beneficia a extrema-direita e o pensamento racista actual.
Ao removermos o racismo de narrativas que se passam precisamente em contexto de colonialismo e opressão, estamos a fazer um favor aos que agora insistem que não havia racismo e que o império português era uma força benigna. Basta imaginarmos que esta censura continua a ser feita durante 50 anos, com todos os livros do mercado. Os racistas do futuro seriam servidos de uma oportunidade de ouro, para avançarem com o mais descarado negacionismo.
Esta prática ainda não chegou a Portugal, mas receio que seja uma questão de tempo. E se agora acontece com livros mais antigos, nada impede que passe a existir algo semelhante com livros ainda por publicar. É possível um cenário que só costumava existir em ditaduras: a censura prévia de todos os textos submetidos a uma editora, para que sejam conformes ao pensamento político do poder vigente.
Temos de resistir a estas medidas. Enquanto leitores, devemos exigir às editoras que não escondam o que é feio, porque só quando o racismo é visível é que sabemos onde combatê-lo. Enquanto escritores, devemos defender o texto e escolher trabalhar com editores que nos ajudem a melhorar o que escrevemos, não a suavizar, mutilando, um tema difícil. Enquanto cidadãos, devemos combater qualquer tipo de censura e fazer do espaço público um local onde os crimes do passado são discutidos para que a sociedade seja um local mais justo. A literatura é importante porque documenta precisamente como a cultura e os valores mudam. Se aceitarmos que nos sirvam textos que foram reformatados pela nossa cultura e pelos nossos valores actuais, deixamos de poder perceber como chegámos até aqui.