#001316 – 11 de Abril de 2023

Quer uma corrida Megavalanche quer uma MonsterTrack são estonteantes. Muitos dos participantes levam câmara. É possível ver a corrida inteira em grande qualidade, na perspectiva de um ciclista, no YouTube. Mas são corridas muito diferentes, embora ambas perigosas. Numa Megavalanche, desce-se uma montanha fazendo parte do percurso na neve, a alta velocidade. As quedas em cadeia são frequentes. Numa MonsterTrack, os ciclistas competem através das ruas de uma cidade como Nova Iorque, em bicicletas de mudança fixa sem travões. Passam vermelhos, vão a reboque de carros, berram para que os peões saiam da frente, andam contra o sentido do trânsito. As diferenças ilustram como a expressão adrenaline junkie é não só redutora como pouco descritiva. Comparar uma e outra seria o mesmo que comparar um combate de boxe com uma rixa de bar.

Imagino que para quem compete numa MonsterTrack faz parte do atrativo o aspeto fora-da-lei. Talvez alguém possa defender estes ciclistas de uma forma análoga à defesa dos grafittis. Que são um produto do ambiente urbano e que a sua passagem agressiva e expressiva pela cidade é um protesto e uma forma de reclamar um lugar. Sigo a corrida de 2023 em Nova Iorque e algo em mim empatiza com a fragilidade dos seus corpos, no meio do trânsito motorizado. Arrepio-me quando um deles choca violentamente contra um táxi num cruzamento, sinto-me um deles quando um carro de alta cilindrada tenta bloquear-lhes o caminho de forma agressiva. Seria fácil dizer que são totalmente maus e não respeitam ninguém, seria igualmente fácil dizer que são corajosos heróis. A realidade é sempre mais complicada. Sinto-me dividido. Escrevo para perceber melhor o que sinto.

Por um lado, o seu comportamento assenta como uma luva em muitos dos estereótipos que condutores anti-bicicletas usam para caracterizar quem se desloca de bicicleta numa bicicleta. Por outro lado o atrevimento de se locomoverem na cidade como se a cidade fosse deles é um sentimento que não me passa ao lado. A cidade é das pessoas e as bicicletas são uma extensão da motricidade humana e deveriam ter mais lugar que os carros. Mas estes rebeldes pedalantes, ou pelo menos as suas atitude extremas, são o outro lado da moeda de cidades feitas para os motores. Numa cidade holandesa, poucos iriam tolerar ciclistas como os que vejo nesta corrida, que chegam a avançar em contra-mão em faixas de ciclistas berrando e fazendo gestos para os outros ciclistas se afastarem. Muito menos seria aceite a forma perigosa como se atravessam no meio de passadeiras cheias de peões aos gritos para se anunciar.

Penso neles como nos punks dos anos 80. Não havendo futuro a ética punk desses tempos encaixa na desolação Thatcher-Reagan. Mas se as coisas correrem bem, a atitude torna-se estética. Nos países nórdicos, durante os anos mais prósperos da social-democracia, havia ainda quem se vestisse como punk sem ter nenhum impulso ou prática anti-sistema. Numa cidade verdadeiramente humana, não seria necessária esta luta encarniçada por um lugar na rua, como se vê no documentário de 2015 Bikes Vs. Cars. Ainda assim, ao contrário por exemplo dos ciclistas de fixies sem travões de São Paulo, que no filme vemos lutar pela segurança de quem pedala, estes atletas rebeldes acabam por glorificar uma estética da insegurança e do perigo. Toda a comunicação e promoção do evento, aliás, reforça e vende quão perigosa é a corrida. Voltando à analogia dos punks, estes ciclistas não têm uma causa, a sua corrida é como um grupo de punks bêbados cujo único comentário que têm sobre a sociedade é a garrafa que partem contra o chão ou a rixa que começam com um desconhecido.