#001602 – 24 de Janeiro de 2024

Eis um dos clichés mais habituais da ficção estado-unidense: o pai, sendo o breadwinner da família, não tem tempo nenhum para a família. Passa o tempo a trabalhar para ganhar o pão que colocará na mesa. Isso cria tensões e ameaça mesmo a estabilidade da família. O casamento fica afectado ao ponto de poder gerar divórcio, os filhos sofrem com a ausência do pai. Nada é tão frequente nas histórias americanas como o pai que sucessivamente falha eventos escolares ou desportivos dos filhos, até aniversários, porque está a trabalhar.

Há séries inteiras construídas sob esta premissa, enredos de filmes, histórias premiadas com óscares e outras de menor qualidade. É uma premissa usada em todos os géneros, não só dramas familiares, mas thrillers, ficção científica, comédias, animação. Este cliché causa-me uma profunda aversão, não por ser cliché, mas pela ideologia que o sustenta.

Tal como a ideia do soldado relutante ajuda a promover a ideia da guerra, a ideia do pai que se sacrifica pela família ao ponto de a perder ajuda a promover a precariedade no trabalho. O que falta a todas estas histórias é a mais ínfima reflexão sobre a realidade americana, em que é normal acumular dois ou três empregos, só para poder pagar as contas da família. Pior, todos os problemas causados por esta fragilidade económica são vistos à luz do dilema do pai, passar mais tempo com a família mas ficar sem dinheiro suficiente para a sustentar ou ganhar dinheiro suficiente mas ficar sem tempo para a família?

É um falso dilema, ou melhor, há que o desmascarar em vez de o promover. Sendo um problema político, há que rejeitar tentativas de branquear responsabilidades políticas. A ficção é tão importante como a realidade, conta verdades que os factos só por si não atingem.