#001617 – 08 de Fevereiro de 2024
Há talvez uns dois meses, acordei a meio da noite com uma história na cabeça. No meio do quarto, cheio de sono, não encontrei caneta. Nem consegui acender a luz. De olhos remelentos mas determinado, acabei por usar o telemóvel para escrever a sinopse de um conto, que aqui transcrevo, com algumas correções e acrescentos, e que é a única narrativa, à data, que escrevi sobre ou com fantasmas. É uma história de amor, triste. Aqui vai. Talvez lhe chame “O pesadelo possível”, se não surgir melhor nome.
—– | —-
Laura era uma fantasma desajeitada. Tropeçava, caindo, através das pessoas vivas. Esquecia-se da sua imaterial presença, falava como se esperasse resposta. Nem sabia bem para onde ia. Perdeu, ao morrer, toda a noção do tempo. Não faz ideia que há um instante atrás ainda vivia.
Olha em redor, vendo apenas o mundo dos vivos. À sua frente Luísa, que está viva. Mas em grande dor, debruçada sobre o cadáver de Laura, o seu cadáver. Quer abraçá-la. Dizer-lhe: estou aqui. Mas já não está. Há meros instantes, atirou-se para a frente de um autocarro e salvou, empurrando, a mulher que ama.
Nessa noite aproxima-se da cama de Luísa, que dorme depois de lhe injetarem tranquilizantes. Olha para ela e tudo muda à sua volta. Chega a pensar que finalmente estará no purgatório. Mas apercebe-se que está dentro do sonho de Luísa. Fala para ela, no sonho, e diz-lhe que está viva. Logo a seguir vê o desespero da sua viúva, que acorda e se lembra de novo que Laura morreu por ela. A culpa é tão grande como a perda.
Nas noites seguintes, visita-a nos sonhos, decidida a convencê-la que, não estando viva, não desapareceu e ainda a ama. Passa a assombrar o sono e, por consequência, a vida da sua amada. Uma noite, durante o sonho, Luísa finalmente acredita e nesse momento acorda. Depois de tanto escutar a mesma voz, a dizer-lhe com a mesma convicção, estou perto, morri mas estou perto, acredita. Isto não pode ser um sonho, é mesmo Laura. Acorda em sobressalto, assustada com a a crueldade desta esperança.
Laura, fantasma, grita: adormece, junta-te a mim, adormece. Depois de muitas horas, finalmente o cansaço leva Laura a adormecer e o sonho torna de novo Luísa real. É pouco, mas mesmo isso se dissolve, açúcar inútil a cair num mar de escuridão. Luísa vai passar sempre a acordar, como se assustada de feliz, assim que reencontra Laura num sonho.