#001621 – 12 de Fevereiro de 2024
O novo filme de Yorgos Lanthimos é incrível. Não li o livro de Alasdair Gray, por isso só consigo escrever sobre a adaptação ao cinema de Poor Things. A forma mais resumida de pensar na narrativa foi de vê-la como um anti-Frankenstein. Na obra-prima de Mary Wollstonecraft Shelley, a criatura é um ser existencialista. Sofre porque não encontra um lugar no mundo, tem de lidar com o horror de conhecer o seu criador, que não lhe dá respostas, nem sequer o aceita. Sente-se absolutamente deslocada, sem propósito. É uma espécie de espelho para a angústia existencial humana. A criatura é como um humano que desperta para a tremenda solidão de existir. Não é isso que acontece com Bella Baxter.
A primeira diferença é que ao contrário da criatura de Shelley, Bella Baxter não é feita de pedaços de corpos humanos, não é uma manta de retalhos. O cientista, em Poor Things, traz de volta para a vida o corpo de uma mulher, o corpo inteiro de uma mulher. A forma de o fazer é macabra, mas encerra uma metáfora. Na história, a mulher que se suicidou estava grávida. O cientista que traz o seu corpo de volta à vida transplanta o cérebro do feto para o corpo da mãe. Neste sentido, é a mulher que morreu que concebeu e deu vida nova à mulher que renasce. E a história de facto tem esse ponto de vista, o de uma mulher que se descobre e determina a si própria. Não haverá uma relação de criatura-criador, como em Frankenstein.
É um filme tremendamente feminista. Assistimos ao crescimento interior de Bella Baxter, já que o corpo desde o início é o de uma mulher adulta. Testemunhamos o despertar de uma mulher para o que é ser mulher. E funciona muito bem esta premissa à Frankenstein. A mente que se vai desenvolvendo naquele corpo de mulher não tem nenhum conhecimento nem nenhum apego às convenções Vitorianas ou a quaisquer outras. A forma como descobre a sexualidade e ao mesmo tempo as expectativas masculinas sobre o seu comportamento é inspiradora. Vai evoluindo de uma certa ingenuidade desarmante, em que nem sequer entende as pretensões masculinas de a dominar, para uma força fundamentada na sua limitada experiência e no crescente conhecimento do mundo e da filosofia. É bastante divertido e revelador ver como o homem que primeiro teve sexo com ela e que se sentia como o tutor não só da sua sexualidade mas sua autonomia se desagrega, por não ter nenhum argumento para restringir o crescimento de Bella Baxter.
O que é ainda mais impressionante é como depois Bella Baxter descobre como foi gerada, como vai à procura do ex-marido, que a tinha levado ao suicídio. Aí tem de confrontar tudo, a violência patriarcal em que a sua vida aristocrática encaixava, a forma estranha como a sua mãe lhe “ofereceu” o corpo em que veio ao mundo. A mulher que lida com a sua situação social e familiar é uma mulher nova. A novidade vem apenas de ter podido crescer sem as restrições habituais que a cultura usa para condicionar o desenvolvimento de um ser humano. É a sua inicial completa desadequação que lhe permite olhar para as relações de poder à sua volta com um olhar novo. Embora a sensibilidade pós-moderna da narrativa talvez pudesse aborrecer Zizek, há algo, central no filme, que me fez lembrar do filósofo esloveno. O cientista em Poor Things é muito diferente de Frankenstein. É um mestre à Lacan. Segundo Zizek, referindo-se a Lacan, o papel de um mestre é o de permitir ao aprendiz (a palavra não é bem aprendiz, mas não me recordo de outra melhor) superar-se a si próprio. E é esse tipo de relação, inicialmente, que existe entre o cientista e Bella Baxter. E não a relação de criador-criatura. Ainda estou a digerir o filme e talvez leia agora o livro. Tenho muita curiosidade em falar com outras pessoas que o tenham visto.