#001660 – 22 de Março de 2024
Seria uma pena que a maior parte dos autores escrevessem apenas sobre si, a sua etnia, a sua nacionalidade, a sua cultura. Os artistas, incluindo os escritores, são, arrisco dizer, os inventores da liberdade. Em certo sentido, testam-lhe continuamente os limites. Mas mais do que isso: vão apontando os contornos da culpa, do medo, do impulso de reprimir, de todas as fragilidades emocionais humanas que a ideologia instrumentaliza. Em tempos de guerra, ajudam a sonhar a paz, a construir um espaço mental em que ela é possível. Em tempos de paz, agitam as consciências, lembrando que há antagonismos, incapacidades, violências que não desapareceram da experiência humana.
Há quem defenda que se deve escrever sobre o que se sabe. É uma premissa que gera bons livros. Mas não pode ser a única atitude. O escritor é muitas vezes o que tenta descobrir o que não sabe. Os tais desconhecidos que ainda se desconhecem. São os autores, em alguns casos, noutros são cientistas, como Einstein, que criam experiência mentais, cenários, um contextos ficcionais em que podemos imaginar como nos comportaríamos, como seria o mundo, sendo diferente.
Para o fazer, é necessário sair do contexto do que se é, em que se nasceu, em que nos colocam. Fazer mais do que contar a nossa história. Há certamente excelente auto-ficção, em Portugal a excelente Isabela Figueiredo. E há imensos autores que escrevem com grande relevância sobre a cultura em que nasceram, o grupo a que pertencem. Mas esse é um aspecto da escrita, não me parece útil tentar fazer dessa abordagem um funil para onde tudo deve convergir. Isto tudo para dizer que me preocupa a sensibilidade actual de que escrever sobre uma cultura, um grupo, uma sociedade, uma etnia, um género, uma orientação sexual que não é a nossa é apropriação ou desrespeito. Acho o contrário. E não é o assunto, muito menos a semelhança ou diferença entre o autor e as suas personagens que tornam um livro condenável.
A ficção científica, sobretudo no mercado norte-americano, tem sido atacada destas ideias (muitas vezes bem intencionadas), consequência do neo-liberalismo vigente que desistiu da igualdade em favor da equidade e da democracia em favor da representatividade. A esquerda norte-americana mingou, mais e mais, até deixar de defender os pobres, os excluídos e os marginalizados, e passar a declamar o credo da proporcionalidade. Como se a pobreza, por exemplo, em si mesma não fosse algo a combater, apenas o facto de estar mal distribuída.
Neste contexto, querer reduzir o acto criativo à expressão pessoal faz parte ainda desta desistência com consequências sociais que não podemos ignorar. No mundo ideal destes liberais, cada um fala só de si, dos seus interesses, numa lógica de liberdade de expressão em que a liberdade é mesmo só essa, a de nos exprimirmos. Quando nos faz mais falta ainda a capacidade de termos um discurso livre (uso uma tradução mais direta da expressão feliz do inglês: freedom of speech).