#001672 – 03 de Abril de 2024

Na Alemanha, judeus são presos com acusações de antissemitismo, ao protestarem contra o genocídio na Palestina. Nos Estados Unidos, está quase a ser aprovada uma lei, o Antisemitism Awareness Act, que redefine o conceito de Antissemitismo passando a incluir simples críticas ao estado de Israel.

Não consigo encontrar melhor exemplo das limitações aberrantes da política identitária. Historicamente não existe maior vítima que a figura do judeu. Ao longo da história, um povo foi perseguido. Nos últimos séculos, intensificou-se a perseguição na Europa culminando no horror nazi. O que aconteceu na segunda guerra mundial é tão inconcebível que hesitamos nas comparações. A Shoah é um acontecimento em que a própria humanidade enquanto hipótese de civilização ficou posta em causa.

Mas agora, chegamos a uma situação em que simplesmente referir a Nakba é arriscar uma acusação de Antissemitismo. É preocupante esta situação em que, em vez de aprendermos com a história, esta é instrumentalizada pelos senhores da guerra. Isto acontece com a conivência internacional, com apoio financeiro, político, militar, moral e agora até jurídico.

O actual governo de Israel conseguiu apropriar-se da definição de tudo o que concerne o estatuto histórico de vítima de um povo (em que há enorme pluralidade filosófica e política) e da consequente definição do que constitui uma ofensa ou ameaça (de discurso ou pensamento) a todos os judeus. É algo feito de forma cínica, estratégica, e com grande eficácia.

É uma terrível prova de que não funciona decidirmos que apenas as vítimas têm o direito de determinar o seu próprio estatuto, o que as ofende, os limites do discurso dos outros. Inevitavelmente quem se apodera do status quo é quem tem mais poder e influência política, não quem é mais vulnerável. Os judeus alemães que diariamente se manifestam solidários com a causa Palestiniana sofrem agora também a violência do estado alemão, para além da ameaça bem real e crescente da nova onda de extrema direita. Não são eles mais vulneráveis que os actuais governantes israelitas?

No movimento de luta pelos direitos civis nos EUA, ou com a Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, envolveu-se uma base larga da população (quando possível mesmo os agressores) para que as coisas mudassem. O actual mainstream liberal de origem estado unidense atomiza as pessoas hipervalorizando as diferenças, ao mesmo tempo fragmentando e essencializando aspectos humanos, cristalizados em unidades de valor político, chamando-lhes identidade, assim fechando artificialmente as pessoas em grupos estanques que se autodefinem.

Não vejo nenhuma saída disto. Mas a resistência de certeza não passará por mais policiamento do discurso. Só iremos resistir com solidariedade e união, dando importância ao que é mais importante, a nossa humanidade comum.