#001910 – 20 de Agosto de 2024
Recordo-me da teologia que fui absorvendo, nas quase duas décadas em que fui cristão. Deus, escutei, está fora da compreensão humana. A sua natureza é por definição impossível de conhecer, através dos sentidos ou da razão humana. Daí ideias como desígnios insondáveis, escrever direito por linhas tortas. Mesmo a acção de Deus no mundo é um desafio à aceitação da Sua Vontade, não um conjunto de mensagens claras para o entendimento humano. Isto é bastante circular, e estabelece limites que dão sempre paradoxos, quando explorados logicamente ad absurdum.
Como escritor sci-fi, penso nisto através de um thought experiment. Imaginemos que Deus existe mesmo e, neste cenário, somos observadores, sabemos o que está a acontecer. Deus existe e a certa altura muda de estratégia. Em vez de fazer com que a vida na terra seja um caminho para a salvação, em que cada pessoa tem a sua cruz e luta com a dificuldade que é manter a fé, decide dar-se a conhecer. A forma física como isso acontece não é importante. Podemos imaginar que Deus materializa ao mesmo tempo, para todos os seres humanos no mundo, a imagem de Jesus Cristo e que Jesus Cristo fala, sendo entendido em todas as línguas do mundo. Mas poderia ser outra forma. O que interessa é que Deus, sendo omnipotente, faz com que cada pessoa entenda que Deus existe, que aquilo não é uma ilusão. Deus, no íntimo de cada ser humano, desencadeia os processos emocionais, intuitivos e racionais necessários para as pessoas não terem dúvidas de que aquilo está mesmo a acontecer e que realmente é Deus a falar. Enquanto observadores sabemos que aquilo não é uma ilusão. Por isso Deus, no íntimo de cada um, não está a persuadir ninguém, está a revelar a realidade.
Ora isto tem algumas semelhantes com acontecimentos cujo resultado foi a conversão de quem os viveu. Usando uma linguagem directa: é a prova inequívoca de que Deus existe. E para algumas pessoas que tiveram experiências de conversão, momentos de transformação interior intensos, foi Deus que lhes falou, que se deu a conhecer. A Igreja Católica está cheia de eventos assim, como as aparições, mas muito mais frequentes ainda são experiências pessoais que são consonantes com esta forma de passar a acreditar em Deus. Na verdade, muitas pessoas passam a vida a procurar ter experiências assim, para que a sua religião tenha um fundamento espiritual e emocional.
Voltando ao exemplo imaginado que dei: para que isso acontecesse, seguindo a lógica da teologia católica (que consegui aprender apenas de forma indirecta, incompleta e deturpada, admito), Deus teria de operar uma pequena transformação. Permitir que a nossa percepção e a sua natureza fossem, afinal compatíveis e pudessem intersectar-se. Porque, lembremo-nos, Deus está fora da realidade mundana física, Deus não é um fenómeno, um elemento da natureza, é algo anterior, ulterior, que está aquém e além do Universo, de tudo o que existe. Não está sujeito às leis da física. Criou-as e pode actuar fora delas. Nós, que estamos debaixo desse jugo da realidade, não estamos em contacto com Deus.
São tautológicas as conclusões que daqui se possam tirar. Esta confusão filosófica é sempre explicada com o mistério, o insondável. Um deus que só posso conhecer depois de morrer e que me pede obediência e aceitação de tudo o que aconteça, seja lá o que for e que me chama de pecador só porque nasci, não é meu pai, não é meu amigo, não é bondoso, não é sequer insondável. É só inverosímil, indesejável e inútil. Mesmo que exista, não o quero e aceito o pecado do meu antiteísmo. Sem provas e sem culpa, desacredito.