#001991 – 09 de Novembro de 2024

No segundo livro da série “Wayfarers”, Becky Chambers consegue interessar-seme numa sensibilidade que tem algo de cibernético mas é surpreendentemente humano. A maior parte das histórias sobre ou com inteligências artificiais que chegam ao mainstream são aborrecidas. Geralmente pouco mais do que um reflexo directo e insuportavelmente previsível das inquietações do senso comum ou da cultura dominante. Não admira, por isso, que boa parte destas histórias sejam thrillers em que uma inteligência artificial “acordou” e cuja consciência se torna imediatamente um perigo para a sobrevivência da espécie humana.

Já em “A Close and Common Orbit”, seguimos duas timelines, acompanhando as duas personagens principais. Uma começa na infância de uma rapariga humana, a outra passa-se no presente, contada do ponto de vista de uma inteligência artificial. O paralelo é incrivelmente interessante. Na primeira timeline, uma inteligência artificial cria e protege a rapariga humana, como uma mãe digital. Na segunda timeline essa rapariga, agora mulher, ensina uma inteligência artificial a fazer-se passar por humana, é sua amiga e cúmplice.

São especialmente convincentes momentos como aquele em que uma inteligência artificial ensina a rapariga o que é comida sólida, e a estranheza com que a rapariga aprende a mastigar e engolir comida ecoa momentos anteriores no livro. Como um pormenor que nunca tinha visto noutras histórias sobre ou com IA: Sidra, a protagonista inteligência artificial, refere-se ao seu corpo sintético na terceira pessoa, como outra coisa, não parte do eu. Quando a rapariga aprende a ser humana, essa estranheza também é corporal. Num e noutro caso, vemos seres que estão a aprender o que é ter agência, quais os limites da autonomia, e que crescem no corpo que habitam. Está muito bem feito e o livro e meio que li até agora desta autora confirmam-na já como uma das minhas favoritas.